Na primeira vez que eles ficaram sem luz, só houve escuridão. Não restou nada na cidade, os cafés se silenciaram, os postes deixaram de mostrar os pingos da chuva que caíam, os que bebiam nos bares resolveram pedir a última da noite e partiram aos esbarrões pela escuridão até em casa onde aos tropeços resolveram dormir. Nos postos de saúde, hospitais e delegacias os geradores foram ativados, mas os rádios, as tvs e as leituras foram interrompidas: o mínimo de luz seria suficiente, era preciso economizar. O céu estava encoberto, era noite e não havia estrelas, a lua era nova e pouco conseguia iluminar por detrás das nuvens. Era agosto e ainda restava um frio seco pelo ar.
Foi estranha a sensação de Antero que estava em seu quarto no momento da queda de luz sentado numa cadeira a olhar da janela para o movimento da rua. Teve vontade de conversar, de telefonar a alguém, de se movimentar ao ver que tudo agora estava escuro. Levantou-se e ligou para sua prima perguntando se a luz havia também acabado por lá, ela que parecia já ter adormecido demorou a responder, mas confirmou, o que fez Antero apenas dizer: “acho que foi geral então.”, desligando o telefone sem mais palavras. Voltou até a janela e viu as últimas luzes da noite partirem: a dos faróis dos carros e ônibus que ainda passavam. A impressão que teve era a de que todos tentavam fazer barulhos, talvez para ativar um outro sentido que não a visão, e aparentemente este seria a audição. Antero percebeu também que se fazia barulhos, ruídos, mas se evitava conversar, os assuntos que antes eram importantes se tornaram secundários: as histórias de amor, as doenças de família, os casos da novela, as dores mal curadas, todas elas aos poucos foram se calando e o assunto era apenas o murmúrio da falta da luz, da ausência dela e dos possíveis motivos dessa queda repentina. No quarto ao lado um menino começou a tocar violão, fora isso mais nada acontecia. A cidade em pouco tempo dormiu, dessa vez mais cedo que o normal.
Pela manhã aparentemente já não se lembrava do incidente da noite anterior, a luz já estava a funcionar e os barulhos dos ônibus trouxeram o dia com o calor, a iluminação e os cheiros comuns à todas as manhãs. Antero havia ido trabalhar e pouco se recordava do incidente que pelo visto havia sido repentino, quem sabe alguma manutenção no sistema, coisa pouca, não haveria porque reclamar, pensava ele sem vontade de comentar disso com outra pessoa.
Trabalhara normalmente, almoçara no mesmo lugar de sempre, assistira o jornal e agora sabia todas as notícias de seu time. Havia tido um dia comum, como foram os seus últimos meses, principalmente depois de se ter formado no mestrado e passado o resto dos dias a trabalhar e pensar no que mais poderia sua vida se tornar. De saída do trabalho, organizou sua pasta e separou algumas coisas para fazer em casa, pois não gostaria de além de sozinho ainda ter que passar por momentos de falta do que fazer, ou de inventar o que fazer, pensava que primeiro se masturbaria, depois veria algum programa estúpido na televisão e voltaria mais tarde para a janela, a observar a vida daqueles que ainda tinham coragem de viver. E foi o que fez, saiu pela porta do serviço, comprou um café para viagem, alguns sanduíches e entrou em seu prédio sem falar com o porteiro que apenas havia lhe acenado com a cabeça. Horas depois estava ele na janela quando em ponto, no mesmo horário da noite anterior, a luz acabou novamente.
Dessa vez o incômodo foi ainda maior que na outra noite. Havia a repetição, a dúvida e a possibilidade de que isso viesse a acontecer todos os dias, e aí como seria? Antero começou a pensar que deveria ter visto televisão antes, deveria ter feito o que trouxera do trabalho, deveria ter tomado banho, meu deus, sem tomar banho?! E tanta coisa deveria ser feita, mas ali ficou ele sentado na janela a olhar a pouca luz dos faróis dos carros e hoje da lua que aparecia aos poucos, pois o tempo ainda não havia melhorado de todo. Ficou ali por horas até que o violão do menino ao lado começou a soar, então ele se levantou, pegou um copo d´água e pela primeira vez apreciou a vista, pode olhar, não o fez para se ocupar, mas para entender o que se passava com a rua, com as pessoas nela, e por fim, com ele.
Nos dias que vieram a luz voltou a faltar, e ao contrário do que se esperava, não houve tantas reclamações. Parece que as pessoas haviam se habituado à falta dela, e agora à esperavam, em alguns bares foram marcadas audições de violão e piano, nas igrejas foram marcados cultos para essa hora e namorados iam para as praças fazer aquilo que não gostariam que fosse visto. Claro que alguns assaltantes aproveitaram para ganhar uma grana extra, mas sem poder ver que haviam sido assaltadas, as vítimas se tornaram mais tranqüilas. Durante o dia tudo parecia normal, mas chegava à noite e a cidade começava a se transformar, até Antero uma vez solitário, passou a ser mais sociável, claro que pelo dia, já que a noite passava horas e horas a contemplar aquilo que havia do mundo que era só dele e não construído para ser. Era Antero, o mundo e o violão do menino.
Até que se descobriu na empresa de distribuição de energia elétrica, a única que havia tido prejuízo com o caso, que a falta de luz era brincadeira de meninos que sempre à mesma hora cortavam um dos fios que transmitia a luz para a cidade. Assim, tudo foi restabelecido e a fiscalização preparada para que tal não se repetisse. Aos poucos tudo voltou ao normal nos cafés, nos bares, nas delegacias, hospitais, nos bombeiros, nas farmácias, nos bingos, por todo o lado, mas alguma coisa havia mudado, pensava Antero, pelo menos na casa do menino onde todo dia na mesma hora as luzes eram desligadas e o violão começava a soar. Ele então resolveu que essa seria uma hora especial em seus dias e continuou a diariamente ir até a janela ver o movimento dos carros e das pessoas e ouvir o menino tocar. Só que nessa noite foi diferente, além dele, do mundo, do menino e do violão, pela primeira vez naquela semana no céu havia estrelas.