29 setembro 2011

Clarim e Rosaura


Conto livremente inspirado nas personagens de “A vida é Sonho” de Calderon de La Barca


Sentado de frente para um campo aberto, que culminaria num rio lá embaixo, estava o Clarim que vestia calça e camisa pretas, justas e gastas, que mais pareciam pijamas. Olhava Rosaura que atrás de uma grande árvore mudava de roupa: primeiro jogara a longa saia para o lado, depois a blusa e agora, ao terminar de aperta a cinta, buscava numa sacola umas roupas. Eram pretas também. Uma calça e um casaco que contrastavam com a camisa branca que botara por baixo. Amarra os sapatos, veste um cinto e sai de trás da árvore dizendo a Clarim: “E por quê você não se vestiu?”

Porque eu só me visto quando me mandam me vestir, como minha senhora não mandou que eu me vestisse, eu não me vesti. Por acaso, o senhor a viu?

Rosaura ri largamente, dizendo a Clarim que era ela quem ali estava, não havia homem nenhum e que ela assim se vestira porque tinha uma missão. O gracioso com cara curiosa disse dando de ombros: “ói, então eu sirvo um que é dois.”, levantando-se e indo ele para trás da árvore se arrumar.
Por cima da calça preta vestiu uma xadrez colorida de verde e vermelho que por estar curta e ele estar sem meias, tinha um toque cômico, pois o fazia andar curvado. O longo casaco que vestia e cobria a calça quase que até nos joelhos era também da mesma cor e tinha botões amarelos. Depois de tudo ainda vestiu um cinto vermelho, que ajustava a casaca na cintura e um chapéu bege com uma longa pena laranja. “Estou pronto”, disse empunhando uma espada de madeira, ao mesmo tempo que Rosaura, travestida, guardava na cintura uma espada dourada e brilhante.
Iam os dois a andar, sempre com um cantil de água na mão. Rosaura um pouco desajeitada por não saber andar tal qual homem levava constantemente a mão à barriga e à espada ajeitando-se dentro do paletó. Clarim possuía uma leveza no andar e no olhar que o fazia, apesar de ir sempre atrás de sua ama, parecer mais livre, mais dono de seu destino, o que era estranho, uma vez que seus rumos estavam subordinado ao de sua patroa. Ele ia à frente, apesar de ir atrás.
Ao chegar próxima ao rio, Clarim ultrapassa sua dona e começa a correr até chegar na água. Num ímpeto de alegria, vira uma ou duas cambalhotas e pára justamente a alguns centímetros da margem, rindo alto, feliz. Cata um graveto e começa a fazer uma redemoinho na água, espantando os peixes que por ali passavam. Rosaura que chega poucos instantes depois não consegue deixar de sorrir, apesar de ter um fundo olhar de preocupação, cujo olhar Clarim não consegue deixar de reparar:

Oi. Se você tá assim, com essa roupa e com essa cara, é porque não deve estar nada bom, né?
Ruim não está, mas pode mudar também.

Nesse instante, aparece por cima deles um enorme trenó sendo carregado por dois cavalos brancos. Clarim segura Rosaura pela mão e a leva correndo atabalhoadamente para dentro do carro, não conseguindo evitar de reparar na beleza dourada do transporte. Com os dois bem acomodados e um pouco nervosos, os cavalos começam a andar pela relva e pouco depois o trenó começa a levantar vôo subindo e subindo. Cada vez mais alto, chega até uma nuvem, a única que tinha naquele céu da tarde mais bela daquela primavera . Aos poucos bem aos poucos, ele vai se tornando menor e menor até desaparecer por completo no imenso azul claro do céu, que de imóvel nos traz somente um som: o de uma risada já longínqua de Clarim.

2008

Nenhum comentário: