16 março 2010

o grito

O dia começou com um grito. Havia acabado de amanhecer, embora os primeiros passos ainda não tivessem sido dados e os galos hoje ainda não tivessem cantado, embora o céu ainda não fosse vermelho nem amarelado, mas entre azul e cinza, mesmo que já possuindo algumas luzes. As pessoas em seus quartos eram entre seis ou sete pessoas distribuídas em quatro quartos não emitiam sons, dormiam pesado, talvez sonhassem pesado, pois sonho, mesmo quando bom, nunca é leve. Algumas tinham ressaca da noite anterior e pouco se moviam, outras já mais inquietas e diurnas, estavam prestes a acordar, como se o mundo tivesse um dispositivo de lhes avisar e trazer-lhes junto para o sol.

A cozinha estava vazia sem gotas a cair pela torneira, e todas as baratas ao preverem o dia já haviam voltado para seus esconderijos. Na sala, na mesa e no chão, umas latas de cerveja da noite anterior, uns copos e cinzeiros sujos espalhados, no parapeito da janela, em cima da televisão, mais nada, a não ser uma mancha vermelha, talvez de vinho, no chão. Mancha que vem do latim e tem a mesma origem das palavras mácula e malha. Então era no chão a mancha vermelha, na parede uma imagem de santa: maria imaculada; e lá fora, no quintal a dormir estariam os animais: as galinhas, os porcos e as vacas. Todas malhadas.

E aí o grito veio. Rompeu as barreiras de espaço, as paredes, os corredores, ecoou no banheiro e mexeu com o dia. Até o sol, depois dele mandou pra cá um forte raio de calor e luz. Os galos começaram a cantar, os cavalos a relinchar e os porcos eufóricos acabaram por chamar a atenção dos cachorros que resolveram latir pra cima deles. Depois, então , bem depois, as pessoas começaram a sair dos quartos, umas ajeitando um roupão, outras sem conseguir abrir direito os olhos, saíam coçando-os mais que conseguindo olhar, outras iam batendo de porta em porta querendo saber o que havia acontecido, se todos estavam bem. Do último quarto, saiu uma moça loira mancando e vestindo um chinelo azul, todos a olharam, mas ela estava com a mesma cara de todos e perguntando o que havia acontecido. Assim, todos levantaram e foram para a sala: um casal de namorados, dois amigos, a moça, e um casal de adultos, donos da casa. Por alguns minutos falaram do que ouviram, no entanto, com o tempo começaram a duvidar daquele grito que acordara a casa, o dia, os animais, todos, mas não existia, não havia ninguém que pudesse ou fizesse o grito ter saído, não havia sequer um eco, um resquício e agora até as testemunhas já estavam a vacilar, a duvidar de que tivessem realmente ouvido aquele som.

Então, aos poucos, quase como se não tivesse vindo, o grito se foi. Silencioso e plácido, acalentador e pacífico, se retirou da vida das pessoas que agora juntas tomavam o café da manhã, enquanto viam juntas o sol nascer e o dia clarear. Depois arrumaram as coisas da noite anterior e segundo a segundo foram retomando a vida novamente, seus hábitos, suas práticas, mas agora era diferente, havia tido um grito que se não veio do céu, ninguém mais pode dizer de onde veio. E a mancha ficou.

Nenhum comentário: