“Isto significa que nos meses imediatos aos exames, e com ampla participação dos nervos, me alimentei de serragem, que por outro lado, me tinham remastigado já mil bocas.” Carta ao Pai - Franz Kafka
Era um sujeito que estava pronto a arranjar uma profissão, mas não sabia como fazê-lo. Seu pai engenheiro e a mãe professora pareciam exercer profissões que já haviam sido ruminadas por séculos de gerações. Aprendera, no decorrer da sua vida, que era uma pessoa única, especial, que deveria fazer aquilo que o coração manda porque era diferente de todos os outros e em todo mundo não existia nada, nem traço nem rastro de qualquer coisa que fosse similar a ele. É claro que não concordava, mesmo porque aprendera na aula de genética que a diferença entre um ser humano e um macaco era de menos de 1%. Ele até concordava com isso, via as similitudes e parecências, muito embora os macacos, do lado deles, parecerem não se importar com esse assunto que para os humanos era tão aflitivo.
Enfim, era um rapaz que aprendera a ser ele mesmo e quando foi escolher uma profissão só havia coisas que outros também faziam. Era um paradoxo. Advogado? Mas já há tantos deles no mundo, andando de terno, falando difícil e tratando mal as pessoas. Médico? Quantos já cuidaram dele, pediatra, ortopedista, urologista, todos de branco e com uma fala mansa apesar da letra bruta. Bancário? Assim como todos aqueles senhores que ficavam atrás daquele computador contando dinheiro e botando numa caixa que aparecia vazia no dia seguinte sem nem ao menos lhe explicarem para onde e para quem fora toda aquela grana. Ia listando uma a uma as profissões e já havia gente demais em todas elas e parecia não haver uma para ele.
Andava pelas ruas olhando e pensando no que poderia fazer. Poderia até inventar uma profissão nova, mas para isso deveria ser inventor, profissão antiga. Artistas se amontoavam também, além de que a maioria deles parecia insensível e egoísta. Sentava na praia e via tanta gente também sentada que chegou até a pensar que estavam passando pela mesma situação que ele, mas não, estavam apenas desempregados: era uma consequência de tanta gente fazer a mesma coisa, sobrava gente para coisa.
Não fazia sentido em sua cabeça essa lógica de profissão, se havia mais gente que profissão, tanto que muitas pessoas nem conseguiam trabalhar, porque então haveriam de escolher logo aquilo para fazer na vida? Escolhe-se uma profissão para trabalhar nela, não para ficar a toa com ela. Profissão não era uma posse, mas uma atividade.
Até que de pensamento em pensamento resolveu estudar que não era uma profissão. Passou a vida inteira estudando, sem nunca ao menos ter trabalhado. Vivia de dinheiro, migalhas, livros e atenção dos outros. Aos poucos foi lendo cada livro que existia, sempre fazendo anotações e escrevendo teorias sobre eles. Depois de cinquenta anos era a pessoa mais culta do seu país, e mesmo sem saber disso pois tinha vivido numa letargia social por tanto tempo, resolveu fazer um pronunciamento. O que sabia era útil para o mundo: bateu nos jornais, revistas, televisões e rádios e não foi recebido. Escrevera um discurso de quase oitocentas páginas que mal conseguia carregar sozinho e queria que todos soubessem o que havia aprendido em toda essa vida de dedicação e estudo. Eram palavras doces e duras, de uma sabedoria que só um homem que, por um lado estava entranhado do mundo e por outro havia se guardado dele poderia escrever. Entretanto ninguém ao menos chegou a recebê-lo. Ficava sempre nas portarias e via passar tanta gente bem arrumada e com o rosto tão tenso que misturava o que via com o que imaginara. Em sua cabeça se fundia o sonho antigo de ter uma profissão com a realidade de toda aquela gente. Seu pronunciamento, seu discurso e tudo que aprendera era tão precioso que parecia ser inútil. Depois de tanto trabalho, percebeu que talvez tudo havia sido em vão, pois em cada porta que batia, ouvia a resposta da secretária: “O senhor não poderá recebê-lo. Está trabalhando.”
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