07 novembro 2012

Querida, Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo




O mito de Fausto me parece uma espécie de tela em branco que possui pequenos milhares de caminhos traçados para imersão no tema. Não sei ao certo e creio que posso ousar dizer que nunca saberei do que trata o mito, ou provavelmente vou assumir no decorrer do caminho que o mito de Fausto trata de absolutamente tudo, só importando de onde se esteja olhando.
Querida, voy a comprar Cigarrillos y Vuelvo de Mariano Cohn e Gastón Duprat é uma adaptação do mito, que diferente das adaptações contemporâneas que tenho visto, se preocupa com o tempo. Ali, mais que em outras, não se pretende dar a um homem de conhecimento intelectual o conhecimento de seu corpo, nem ao menos dar a ele fama ou glória ou mulheres, mas sim, coloca-lo diretamente com o tempo, com o seu tempo eterno e circular de uma vida que passa iminentemente para a morte, mas que ao retornar também não apresenta saída.
O Filme começa em Marrocos, com bodes em cima das árvores, em um mundo semi-mágico onde um árabe ao atravessar o deserto é atingido por um raio e logo em seguida por outro. Desmontando o lugar comum de que “a chance de cair um raio em uma pessoa é uma em um milhão” e “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”, esse sujeito é premiado em segundos com a morte e a ressurreição para a vida eterna. É o Mefisto da obra, que em Querida voy a comprar... é chamado InMortal.
Esse sujeito viaja nos tempos, espécie de Caim, fazendo pactos com seres a fim de se divertir. É quando oferece a Ernesto, um argentino como qualquer outro, a chance de voltar ao passado para conserta-lo e, depois de 10 anos, retorna-lo para aquele momento com um milhão de dólares.
Então, o caminho de Ernesto, creio eu, passa a ser da vivência de uma via crucis às avessas em que primeiro volta alguns anos atrás para poder se redimir da morte de sua mãe e recebe um “não” para seu perdido de perdão. “Velha desgraçada”, esbraveja. Parte então para tentar montar o que seria o primeiro reality show de todos os tempos. Fracassa. Tenta avisar aos EUA sobre o ataque às Torres Gêmeas no dia anterior, não o levam a sério, mas depois prendem e torturam. Pede ajuda e InMortal salva.
Faz então sua segunda viagem, um pouco mais para trás, enquanto jovem. Foge de casa e plagia a canção Imagine de John Lennon. Ganha fama, casa-se com uma bela loira, mas é condenado por plágio e, por se sentir injustiçado, vai para os tribunais esbravejar sobre o  mundo. Tido como louco, é internado num manicômio. Lá, há um doutor, diz a frase mais bela de todo filme:
“Todos vocês me dão nojo. Mas são muitos. E essa é sua vantagem. Ficam amontoados nos ônibus, ficam ajoelhados nas igrejas, trabalham, acumulam para suas crias. Mas eu sou diferente. Sou feio. Sujo. Sou prejudicial. Tenho medo, doutor.”
Aí vem sua segunda morte, suicídio. Quando é condenado por InMortal a viver seus últimos anos de pacto como criança, desde bebê, vivendo em uma espécie de escafandro de si próprio, onde só lhe é permitido pensar. Tudo isso é entremeado por inserções narrativas do autor do conto em que o filme foi baseado, Alberto Laiseca. Dando suas opiniões, ele vai recolando Ernesto no lugar de deslocado do mundo, dos outros, como um perdedor, um looser, um outsider, alguém que deveria ter sido escondido da sociedade ou não permitido nascer.
O pacto entre Ernesto e InMortal é o pacto do tempo. Um gostaria de ter outra chance, outro dá lhe a chance. O resultado é o mesmo dos outros pactos: não é a força, a chance, o tempo, o corpo ou o amor que podem redimir quem quer que seja. Não há remissão, essa impossibilidade é inválida. A vida é por demais desordenada e caótica para permitir que se façam planos, projetos e mudança.
Querida, me voy...é mais uma obra dos homens abandonados por Deus, mais uma obra em que a personagem duplica a imagem de Jesus em um mundo hostil rumando para a desgraça eminente, como ordem de seu criador. Ao mesmo tempo em que o Diabo, Mefisto, mais terreno, tenta olhar a dor do homem e tentar compensa-la com prazer, também terreno. Não há saída.
Ernesto, quando volta para o tempo atual, resolve entregar o dinheiro à sua esposa e sair, sumir, fazer outras coisas, mas já não há muito o que fazer. A idade, a dor, a certeza de inutilidade da ação. O mundo é sempre muito maior. Inmortal vai, viaja e encontra outro, outro que precisa de tempo.  Que tempo? Um que agora sabemos que nem existe.
No fim, Laiseca diz que Ernesto volta para a vida“como um porco que anda todo podre.” E finaliza:
“Cada vez penso com mais convicção que uma pessoa, só pelo fato de fazer aniversário, já é um malvado. As diversas idades de um homem, eu as denominaria de campos de concentração. A cada ano um arame farpado a mais. Trinta já é Auschwitz. Falo sério.”
É esse o tempo. É esse o tempo de que ele fala. O tempo de uma imagem recorrente, o tempo de uma tartaruga.

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