O mito de
Fausto me parece uma espécie de tela em branco que possui pequenos milhares
de caminhos traçados para imersão no tema. Não sei ao certo e creio que posso
ousar dizer que nunca saberei do que trata o mito, ou provavelmente
vou assumir no decorrer do caminho que o mito de Fausto trata de absolutamente
tudo, só importando de onde se esteja olhando.
Querida, voy a
comprar Cigarrillos y Vuelvo de Mariano Cohn e Gastón Duprat é uma adaptação do
mito, que diferente das adaptações contemporâneas que tenho visto, se preocupa
com o tempo. Ali, mais que em outras, não se pretende dar a um homem de
conhecimento intelectual o conhecimento de seu corpo, nem ao menos dar a ele
fama ou glória ou mulheres, mas sim, coloca-lo diretamente com o tempo, com o
seu tempo eterno e circular de uma vida que passa iminentemente para a morte,
mas que ao retornar também não apresenta saída.
O Filme começa
em Marrocos, com bodes em cima das árvores, em um mundo semi-mágico onde um
árabe ao atravessar o deserto é atingido por um raio e logo em seguida por
outro. Desmontando o lugar comum de que “a chance de cair um raio em uma pessoa
é uma em um milhão” e “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”, esse sujeito
é premiado em segundos com a morte e a ressurreição para a vida eterna. É o
Mefisto da obra, que em Querida voy a comprar... é chamado InMortal.
Esse sujeito
viaja nos tempos, espécie de Caim, fazendo pactos com seres a fim de se
divertir. É quando oferece a Ernesto, um argentino como qualquer outro, a
chance de voltar ao passado para conserta-lo e, depois de 10 anos, retorna-lo
para aquele momento com um milhão de dólares.
Então, o
caminho de Ernesto, creio eu, passa a ser da vivência de uma via crucis às
avessas em que primeiro volta alguns anos atrás para poder se redimir da morte
de sua mãe e recebe um “não” para seu perdido de perdão. “Velha desgraçada”,
esbraveja. Parte então para tentar montar o que seria o primeiro reality
show de todos os tempos. Fracassa. Tenta avisar aos EUA sobre o ataque às
Torres Gêmeas no dia anterior, não o levam a sério, mas depois prendem e
torturam. Pede ajuda e InMortal salva.
Faz então sua
segunda viagem, um pouco mais para trás, enquanto jovem. Foge de casa e plagia
a canção Imagine de John Lennon. Ganha fama, casa-se com uma bela loira, mas é
condenado por plágio e, por se sentir injustiçado, vai para os tribunais
esbravejar sobre o mundo. Tido como
louco, é internado num manicômio. Lá, há um doutor, diz a frase mais bela de
todo filme:
“Todos vocês me dão nojo. Mas são muitos. E
essa é sua vantagem. Ficam amontoados nos ônibus, ficam ajoelhados nas igrejas,
trabalham, acumulam para suas crias. Mas eu sou diferente. Sou feio. Sujo. Sou
prejudicial. Tenho medo, doutor.”
Aí vem sua segunda
morte, suicídio. Quando é condenado por InMortal a viver seus últimos anos de
pacto como criança, desde bebê, vivendo em uma espécie de escafandro de si
próprio, onde só lhe é permitido pensar. Tudo isso é entremeado por inserções
narrativas do autor do conto em que o filme foi baseado, Alberto Laiseca. Dando
suas opiniões, ele vai recolando Ernesto no lugar de deslocado do mundo, dos
outros, como um perdedor, um looser, um outsider, alguém que deveria ter sido
escondido da sociedade ou não permitido nascer.
O pacto entre
Ernesto e InMortal é o pacto do tempo. Um gostaria de ter outra chance, outro
dá lhe a chance. O resultado é o mesmo dos outros pactos: não é a força, a
chance, o tempo, o corpo ou o amor que podem redimir quem quer que seja. Não há
remissão, essa impossibilidade é inválida. A vida é por demais desordenada e
caótica para permitir que se façam planos, projetos e mudança.
Querida, me
voy...é mais uma obra dos homens abandonados por Deus, mais uma obra em que a
personagem duplica a imagem de Jesus em um mundo hostil rumando para a desgraça
eminente, como ordem de seu criador. Ao mesmo tempo em que o Diabo, Mefisto,
mais terreno, tenta olhar a dor do homem e tentar compensa-la com prazer,
também terreno. Não há saída.
Ernesto,
quando volta para o tempo atual, resolve entregar o dinheiro à sua esposa e
sair, sumir, fazer outras coisas, mas já não há muito o que fazer. A idade, a
dor, a certeza de inutilidade da ação. O mundo é sempre muito maior. Inmortal
vai, viaja e encontra outro, outro que precisa de tempo. Que tempo? Um que agora sabemos que nem
existe.
No fim,
Laiseca diz que Ernesto volta para a vida“como um porco que anda todo podre.” E finaliza:
“Cada vez penso com mais convicção que uma
pessoa, só pelo fato de fazer aniversário, já é um malvado. As diversas idades
de um homem, eu as denominaria de campos de concentração. A cada ano um arame
farpado a mais. Trinta já é Auschwitz. Falo sério.”
É esse o
tempo. É esse o tempo de que ele fala. O tempo de uma imagem recorrente, o
tempo de uma tartaruga.
Link IMDB: http://www.imdb.com/title/tt1756692/
Link Torrent: http://thepiratebay.se/torrent/7013379
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