18 junho 2010
último dia de José
Despertou mais cedo que o normal e tentou com algum esforço levantar a cabeça para ver o tempo que fazia em Lanzarotte. Sorriu por dentro por ainda se preocupar com essas bobagens como o tempo ou o estado das coisas, enfim, das coisas mais fugidias. O tempo, o clima, pensou, serve mesmo para as plantas, as estações do ano, as marés e os animais, para os homens só lhes dão um empecilho aqui e outro ali. Nada de importante deixaria de ser feito porque chove. Estava debilitado e queria ir ao banheiro, no entanto Pilar não estava no quarto, por isso fechou os olhos por mais algum tempo para que quando ela chegasse não se chateasse, não gostaria que ela pensasse que o havia deixado esperar tempo demasiado. Cochilou e num sono breve viu um elefante a atravessar o deserto. Havia lido em algum canto e reescrito aquela história e até agora não se dava conta da dificuldade que havia de ter sido esse trajeto. Escreve-la não fora e jamais chegaria perto do esforço que aquele gigante deve ter feito pelas trilhas turvas desse gigante maior, sem trilhas, que era um deserto. Viu o Sr. José na Conservatória Geral do Registro Civil, na última mesa a bater uma máquina, ou computador, sua memória de si e de seus outros já começavam a rarear. Acordou pouco depois com Pilar que lhe trazia o café. Sentou-se com algum esforço, o travesseiro colocado nas finas costas, já emagrecidas, e comeu. Disse a Pilar em bom espanhol, Essas bolachas estão deliciosas, Foi seu Marco da padaria que as trouxe, Agora é ele quem as traz, já não as busca mais, Ele achou que assim seria melhor, para que eu pudesse cuidar melhor de si, Estou bem aqui, estou fraco e adoecido, mas sei que estou sempre bem e há também as enfermeiras que não se cansam nunca de me cansar, José, entenda, disse ela tentando ser compreensiva, você merece e requer cuidados e não seria eu, e parou vacilante sem saber mais o que dizer. Então ele a interrompeu, Dediquei-te um livro uma vez com essas palavras “A Pilar, como se dissesse água” e as repito agora. Ficaram em silêncio por instantes e como se fossem água num rio se deixaram passar. Pilar levantou para levar o café e José se sentiu extremamente cansado, um cansaço feliz, era um sentimento que ele tentava descrever em sua cabeça, porém era incapaz, doía e era bom, enfraquecia a cabeça, mas enrijecia os braços e pernas, foi quando viu a si aos 62 anos sentado na cadeira da frente com uma camisa vermelha, calça jeans um pouco velha e um blazer do tipo que os jornalistas usam. Não se conteve, O que fazes aí, José, Estou aqui porque comecei a escrever agora, E eu, paro de escrever agora, Sempre vais escrever José, estás a escrever nesse instante, Eu sim, mas não minha mão, como vão me ler assim, Sempre preocupado em dizer coisas as pessoas, elas sabem se virar sozinhas, Não é o que parece, Talvez sim, mas bem ou mal elas vão aprender a viver sem ti, Espero que sim, não gostava de ser tão importante, Isso já o é, Isso já o sei. E lamentou com profunda tristeza. Quando num outro canto Ricardo Reis apareceu ao lado de Fernando Pessoa, ambos muito parecidos, com roupas parecidas, só Reis que parecia um tanto mais jovem. E tu Reis, vais fazer o que com tua Lídia, O de sempre José, lê-la, E tu Pessoa, também aqui estás, Não podia deixar de vir, ainda mais que Reis fez tanta questão principalmente depois do tanto que ele me disse de si. Obrigado, amigos, não sabia que tinha tantos assim. Não pode dizer mais, se emocionava. Aos poucos apareceram mais pessoas: Camões, Eça, Garret, Quental. Todos olhavam José com tamanha singeleza que um profundo e segundo silêncio se fez, foi quando Pilar entrou no quarto e se espantou com o tamanho rebuliço de pessoas no quarto. O que se passa, José, perguntou, São meus amigos da vida, vieram atrás de mim, Estás a ir, Não, ficarei por aqui mesmo, mas de outra maneira. De repente, o José mais moço se sentou ao seu lado e perguntou, E agora José, como é, É tal qual sempre imaginei, dói e é bom, bate um cansaço e descansa, fere, arranha, mas acalma, a morte é bastante dialética. E sorriu. O mais moço segurou sua mão, José se levantou, vestiu uma roupa apropriada e junto com os outros saiu porta afora. Saíram rindo e conversando, e ainda da cama Pilar pode ouvir José dizer, cala-te Camões, és um chato.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário