Conto-paródia baseado em "A calça secreta" de Machado de Assis
Aos seis, sete anos, eu vi um cavalo, um cavalo de corrida.Senti então que não há ninguém mais nu do que certos cavalos."
Toda Nudez será Castigada- Nelson Rodrigues
Estão Garcia, Fortunato e Maria Luísa imóveis na sala. O primeiro, desatento e quieto no sofá; o segundo de frente para a janela; a última contemplando os outros sem se dar conta da gravidade da situação. Sofre. A questão é: Garcia está pelado.
Voltemos para o início dessa complexa rede de relações a fim de tentar entender o que se passa naquela sala de um subúrbio carioca.
Garcia estava para se formar médico, quando um dia, embriago, tombou em frente a um ponto de ônibus e adormeceu. Acordou vomitado e no caminho de casa passou por uma estranha figura que ao sentir seu cheiro abriu os pulmões, sorriu e não se conteve. “Que belo dia!”, disse.
Alguns dias depois, na porta de um bar, viu passar a mesma estranha figura amparando um homem de muletas.
Ele caiu, dizia sorrindo.
Obrigado pela ajuda, dizia o manco.
Pouco tempo depois, a figura reapareceu com a roupa suja de sangue. Entrou no bar, pediu uma bebida e olhou inquieto e pesquisador para os lados.
Fortunato, disse se aproximando de Garcia.
Garcia, disse se apresentando à Fortunato.
Beberam juntos. Fortunato conversava desenvoltamente. Era um homem culto, citou até uma foto de Fernando Pessoa onde o poeta aparece em um bar e logo abaixo a dedicatória: “Fernando Pessoa em flagrante de litro.” Riram. Garcia perguntou do manco e Fortunato mal parecia se lembrar do caso.
Não lembrariam de mais nada. Acordaram na mesma cama, pelados e de banho tomado. Estavam na casa de Fortunato e só perceberam depois que entrou Maria Luísa no quarto.
Minha esposa, disse Fortunato.
Garcia, constrangido, se calou, pensando na estranheza daquela cena e na exposição de seu corpo perante a esposa de um semi-desconhecido: “Ela me viu pelado, o que será que achou?”
Maria Luísa trouxe o café da manhã. Os dois comeram, se vestiram e Garcia foi embora, prometendo voltar com um presente de desculpas. O casal agradeceu.
Na semana seguinte, Garcia voltou à casa trazendo consigo três entradas para o teatro, um ramo de flores e um whisky. Dirigiu-se até a porta dos fundos, por onde saíra no outro dia. Da janela viu Maria Luisa pelada. A moça se assustou, tampando-se, mas logo sorriu e mexeu a boca dizendo algo que ele não percebeu. “Estamos quites, deve ser”, imaginou Garcia.
Manso a manso, entrou-lhe o sexo no coração. Garcia correu até a cozinha e perguntou por Fortunato.
Está matando um rato no laboratório, disse Maria Luísa.
Então não demora.
Que nada, ele mata bem devagar.
Mas é um rato, não um elefante.
É que meu marido é milimétrico ao matar.
Que bom, eu não gosto de ratos.
Nem eu.
Fortunato entrou na cozinha à procura de um copo d´água. Viu um vulto passar em direção à sala. Seguiu. Encontrou Garcia completamente pelado e Maria Luisa normal, vestida, com uma bandeja de café na mão.
O que se passa aqui?, perguntou Fortunato.
Um silêncio se fez. Estamos de volta exatamente no início de nossa narrativa. Fortunato na janela, Garcia pelado no sofá e Maria Luísa, atônita, sem entender, de pé.
Hahaha! Você só entra na minha casa pelado?, disse Fortunato sem se virar.
Acontece, acontece.
Dessa vez qual a sua explicação?
Eu...eu..., Maria Luísa tenta se explicar.
Silêncio. Quero ouvir o que o quase Dr. Garcia tem a dizer.
Vinha trazendo esses presentes: as entradas para o teatro, um ramo de flores e um whisky quando...
Durante a narrativa de Garcia, Fortunato foi tirando uma a uma suas peças de roupa. Ouve atentamente, mas sem se importar com as palavras que por ali passam. “Ele não sente nada”, pensa Garcia, nervoso, suado. Quando o amigo termina, Fortunato completamente pelado se aproxima.
Levante-se.
Como?
Levante-se agora.
Com os dois em pé se pode ver como Fortunato é maior que o outro. Tem os ombros maiores, as costas mais largas, as pernas mais grossas. Em um gesto brusco, Fortunato levanta os braços, Garcia ameaça se defender, mas ganha um abraço do amigo.
A partir de agora, você só entra aqui em casa pelado. É uma ordem. E assim que eu o vir, também vou tirar a roupa. Não podemos mais nos ver de outra forma, combinado?
Garcia retribui o abraço, meio de lado, com medo de que seus membros se toquem. Está acuado pela grandeza do outro, mas também pela inusitada decisão que acabou de tomar. Não pode negar um trato sob tais circunstâncias.
Fortunato abre o whisky, serve dois copos e pede para Maria Luísa buscar gelo. Quando ficam sós, ele chama Garcia e tira de uma gaveta uma foto. É a de Fernando Pessoa no bar. Riram.
Imagina ele pelado, diz Fortunato.
Prefiro não, diz Garcia.
Embriagam-se. Dessa vez, Garcia não dorme lá. Vai por volta de duas da manhã bastante alterado. Sai pela porta dos fundos e na escuridão desaparece. Nunca mais voltaria àquela casa.
Assim que Fortunato dormiu, Maria Luísa voltou à cozinha, olhou em volta e sem qualquer fragmento de sentimento, saiu pela porta dos fundo. Na escuridão, sem levar absolutamente, desapareceu. Nunca mais voltaria àquela casa.
Na manhã seguinte, um pouco antes dos primeiros raios da aurora, Fortunato acordou e viu a cama vazia. Desceu e nem ao mesmo tentou entender. Saiu pela porta dos fundos e, aos primeiros raios de sol, desapareceu. Nunca mais voltaria àquela casa.
A casa, agora vazia, permanece lá e há um silêncio tão grande atravessando os cômodos, as portas, os objetos, que parece que nunca mais nenhuma palavra, nenhum som sairá daquele lugar.
28/04/2011
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