"Então vamos, disse, Para onde é que vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se." O ano da morte de Ricardo Reis - José Saramago
Não sou uma pessoa que lida bem com as coisas. Não tenho grandes lembranças dos meus avós, nada que me marcasse a ponto de ter aquilo como parte integrante de mim. Lembro no máximo de um cheiro, de uma comida, de umas palavras, mas nada que me faça ser o que sou hoje. Entretanto, esse velhinho, audaz e frágil, irônico e engraçado, forte e sútil, também sou eu. Foi ele que me ensinou a escrever, me ensinou a pensar e me levou às melhores viagens que tive na vida. Lembro que o Sr. José acompanhou minha vida por muitos meses, numa batalha ferrenha entre texto e eu, que no fim perdi e vi o Sr. José, um outro já, emergir na escuridão. Lembro também de Pedro Orce, com o cão sempre ao lado, morrendo ao mesmo tempo que aquela imensa jangada ibérica parava no meio do oceano e lembro também de ali ter nascido uma árvore. Lembro das viagens de Ricardo Reis por Lisboa e das imensas conversas dele com Fernando Pessoa, ou seus passeios por entre os eventos urbanos. Lembro também do pobre Caim, do cão das lágrimas, da mulher de óculos, de Joana Carda, de jesus e até do senhor deus e de todas as pessoas que passaram na obra dele, pois Saramago também era todos eles.
Enfim, Saramago é tão próximo de mim que é um parente, meu avô, minha maior referência, a única pessoa que quando dizia algo eu parava pra escutar, com a admiração de um aluno e o respeito de uma criança. Ele fazia um obra contemporânea parecer clássica e isso me fazia tira-lo do tempo, ve-lo quase como alguém que de outro mundo vem para escrever sobre esse, quase profético.
E agora que ele sumiu, pois um ateu nunca se rende e não seria agora que ele se renderia, vai existir comigo, pra onde eu for e sempre que eu escrever vou tentar fazer jus à ele. Agora que ele sumiu é obrigação minha lembrar também dele e dizer a todos que um homem escreveu, que seu avô era criador de porcos e analfabeto e que ele um dia com as palavras tentou mudar o mundo. E mudou o meu.
Um comentário:
Faço suas as minhas. :')
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