17 novembro 2009

o matadouro

“Se a maldade deles é infinita,
infinita também é sua pobreza.
Não foi a maldade dos pobres que você me mostrou,
foi a pobreza dos pobres.”
Bertold Brecht

De braços abertos e grito abafado pelo som das máquinas, Adão despencou lá de cima. Foram alguns segundos apenas, olhar para um lado, tropeçar e puft, ou qualquer som desses, se bem que o primeiro barulho foi seco, da queda e depois o da trituração, mas nada diferente do som que já se fazia. Caso se tivesse olhado momentos antes, se veria que não foi erro dele, que fazia tudo corretamente e que era mesmo perigoso o tal serviço que em algum momento qualquer, oxalá fique para amanhã, traria essa má sorte para alguns deles funcionários. Com Adão veio a acontecer justamente hoje ao fim do expediente, já na última meia hora, quando talvez o corpo já não correspondesse propriamente às vontades e a cabeça já estivesse voltada para outro lado do mundo, quem sabe o de fora, mas que agora já não era nada de importante.

A má ou boa sorte de se trabalhar em matadouros é essa. Já se vive e é carne, mesmo que não sei queira, mesmo que se evite, mesmo que se mude de mundo e de corpo, mesmo que se abandone o trabalho, mesmo assim sempre saberá que é carne, e sentirá ela muito mais intensamente, no cheiro, nos poros, até no apelo dramática que é um arranhão, uma cicatriz, mesmo quando tapados por um curativo, um simples band-aid qualquer. Assim, para Adão, do grito que não se ouviu à queda para dentro da máquina de toucinho tudo fora uma viagem esperada, a realização de algo que já se sabia mais do que aguardado por alguma intuição, ou quem sabe, talvez até já houvesse desejado essa queda, de tanto que se olhava os bois ali caírem, já em pedaços. E depois da queda foi exatamente isso que aconteceu, como todo animal ali foi triturado, amassado, misturado às outras carnes, virava um coletivo, um coro, uma nova sociedade.

Acontece que Agildo, chefe da sessão não pode e não tem vontade de deixar vir a tona a morte de Adão, que segundo ele, era morte normal, já que sempre lhe achara uma rapaz desequilibrado e obviamente aguardava o dia em que viria a se matar, infelizmente escolhera aquela tarde, no fim do expediente, justamente no dia que Agildo ficava sozinho, como sempre se sentia. Agildo, então, achou melhor que ninguém morresse, porque morrer era ruim e trazia péssimas recordações aos outros, então foi até a máquina de trituração e resgatou o macacão azul do funcionário morto colocando-o no cabide, onde os funcionários se vestiam. O macacão, bordado à mão pela sua própria esposa que fazia a confecção das roupas da fábrica, agora já um pouco rasgado, ficou apenas poucas horas ali no cabideiro da empresa juntos a uns armários, que mais pareciam gavetas, se bem que aqueles funcionários carregavam pouca coisa, inclusive nas cabeças e nas marmitas. Assim de macacão velho posto como novo, Agildo dissimulou e assim que pode foi perguntar aos demais funcionários onde estaria Adão, aquele excelente funcionário, tão prestativo e cumpridor de seu serviço. Como ninguém sabia a resposta ficou claro para todos, inclusive para nós que sabemos como as coisas são, que Adão fora embora, desistira, deveria ter passado mal ou tido problemas de família. Assim, pois as coisas são rápidas nesse mundo de empresas, Agildo tinha um álibi para ligar para casa da família de Adão, para a esposa quarentona que engordava, para a mãe que morava junto e meio empregada retribuindo o favor de ali poder morar, e perguntar por Adão, novamente o excelente e motivado funcionário que nunca havia deixado a empresa na mão, coisa que causava espanto pois não era de seu feitio desvanecer assim pelo vento de uma hora para outra.

Uma família desesperada foi o que se viu. Era ligar para IML, hospital, procurar em botequim, valas, farmácias, puteiros, ruas e avenidas, bancos, praças públicas, oficinas, padarias, saía-se perguntando por todos os cantos onde estaria aquele homem, pai de família, 'o seu Adão, é aquele flamenguista que vem sempre aqui ver os jogos, que gosta de sinuca', dizia a esposa para o dono do bar, que lembrava, claro, mas preferia fingir não saber de coisa alguma, pois não tinha nada a ver com isso e não ia se comprometer. 'É seu Torres, meu filho teve aqui?', dizia a senhora para o dono da banca de jornal, mas logo depois mudava de assunto, falando de coisas do dia, da novela, por fim, lembrando do filho e dizendo que lhe daria boas surras, porque 'sabe como é seu Torres, num é porque é criado que pode fazer dessas coisas'.

Agildo no mesmo dia procurou por uma ficha no departamento pessoal: buscava um novo funcionáro. Era negro, assim como Adão, do mesmo tamanho e porte físico, para a empresa e para o chefe, ainda era Adão, para os funcionários não, ainda sentiriam por um tempo a falta do amigo, mas alguns, em contato com esse novo empregado que começara no dia seguinte da morte de Adão, já se tornara tudo confuso, alguns em poucos tempo já esqueciam de Adão, faziam-no sumir de suas memórias, um deles até ao chamar o novato, que se chamava Pedro, trocou os nomes e falou Adão, que misturado, se pode ouvir algo como Pedradão, outros chegavam atá a dizer que Pedro era muito melhor que Adão, mais simpático e que entendia muito mais das coisas. E Pedro, que usava a roupa de Adão, e para falar a verdade, Agildo dera um jeito de que Pedro fosse Adão, tal qual outro, que recebesse o salário pela conta de Adão, que passasse o cartão de Adão, que cumprisse metas assim como Adão, e assim, fosse carne e máquina, e ali estivesse como estava Adão. Os superiores jamais saberiam a diferença, e Pedro sabia, que tinha um emprego que era de outro e não entendia como poderia ser outro, mas percebia cada vez mais que não tinha tanta diferença e que não valia tanto a pena querer ser ele mesmo, pois sendo outro, seria cobrado como outro e poderia um dia ir embora, é que não queria viver ali para sempre, queria viajar com a família, poderia também ir embora como outro, sem morrer. Aliás, Pedro demorara para descobrir que assumira a vida de um morto, mas quando descobriu achou a melhor coisa que podia lhe acontecer, servia no mínimo para dar risadas. Não é porque as pessoas são outras que quer dizer que elas mudaram.

A família que no início estava desesperada decidiu ir até à fábrica reclamar, lá chegaram com advogados da defensoria pública e sentaram na mesa do chefe. Era a esposa e a mãe, as duas lado a lado, tal qual Maria e Madalena, cada qual com sua função e com a mesma dor, a mesma busca, porque sempre há alguém para morrer na cruz e não estar mais nem aí para nada, e sempre há alguém que chorará pelo que foi. O chefe, um homem grande atrás de uma mesa lhes disse: 'Adão está trabalhando', e estas frases ditas assim de trás da mesa parece que ganham outra forma, outro peso, como se houvesse uma blindagem ali entre o lado de cá e o lado de lá, tanto que as duas não foram capazes de responder, apenas capazes de não compreender e saírem dali para ir até o setor onde Adão trabalhava. Assim foram até a máquina onde agora estava Pedro, viram um e não viram outro, mas não viram um com o macacão do outro, então, voltaram até o chefe que ao saber da ausência de Adão, chamara Pedro para uma conversa, que como sendo Adão tornou a situação demasiada complexa, e nestes casos fica tudo para depois, pois aquele que foi chamado lá estava, nada foi feito tendo sido liberada a família, outro modo de falar que fora enxotada dali. A verdade é que assim que a família saiu, o chefe foi até Agildo, descobriu o acontecido e se consultou com os advogados que lhe disseram: 'está tudo como está, não há porque mudar', cuja rima fez rir ao chefe.

Na saída do expediente, saíam Pedro e Agildo, quando a família de Adão estava toda à espera do lado de fora, para interpelar o novo funcionário, ou o velho-novo, ou o que quer que seja. Adão fez olhares repreensivos para Pedro que entendeu o recado, mas não pode negar o pedido da esposa para que converssassem, chamando-o para um café, ao qual a mãe não foi convidada. Então os dois foram até um botequim da esquina, onde havia duas mesas, uma com um velho senhor com cara de intelectual a beber cerveja e cachaça, pois ao lado do copo de uma estava a outra, e a mesa que agoram sentavam Pedro e a mulher. O chão era molhado e grudento, o que se misturava com o suor do funcionário negro e novo que ali pingava e se misturava à poeira que o ventilador velho lhe dispensava.

E foi então que tudo começou. Pedro não poderia dizer quem era ele na empresa, nem ela poderia imaginar, entretanto ele poderia, em nome do emprego, da estabilidade e da possibilidade de ascensão profissional arrumar outra maneira de se iniciar essa conversa, foi aí que decidiu que ele e a esposa deveriam ficar juntos, tornarem-se marido e mulher. Assim foi, houve alguma demora entre os flertes, as cervejas, os primeiros beijos, os sexos e enfim o compromisso, mas tudo voltou a ordem inicial. Ela já não se lembrava mais de, como era o nome dele mesmo? A mãe não saiu de casa, mas passou a receber pelos serviços que ali fazia, então ninguém da história foi prejudicado. A vida só piora para que tem privilégios, e a fome e as necessidades as fazem quase mudas para os problemas da vida. Adão se tornou o ingrato que fugiu de casa. A esposa tinha um marido, Pedro um emprego, a mãe um salário, Agildo um aumento e o chefe paz. Pelo menos até o próximo caso. Aliás, houve um prejudicado: o nome dele é Fernando Mendes e ele fez uma macarronada para os amigos e o molho à bolonhesa dele tinha algo mais além de tomate e carne de vaca. “Fernando”, dizia a loira à mesa, “essa macarronada está uma delícia”.

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