
Borges começa sua fala ressaltando o fascínio do Ocidente pelo Oriente que representa o estranho, o escuro, o outro, o inexplicável. Destaca que o Oriente não tem uma noção de história como temos, para eles a história é fluída, cíclica, não existe uma “sucessão de fatos”, por isso que os egípcios eram vistos pelos gregos como povos “de outro tempo”, o que novamente destaca uma espécie de temporalidade, um fato determinante para o interesse na história das “Mil e Uma Noites”, uma vez que esse “mil e uma” não representa exatamente esse número, mas sim, um infinito número, um incontável número de contos que cabem dentro daquela mesma narração de Sherazade. Aliás, essa forma precisa e exata de se manter sempre uma obra aberta e que permite não só a adaptação, mudança e criação de novos contos, como também essa participação plural de vozes que permeiam e adentram a obra, num profundo exercício de lapidação. É nessa obra “aberta” de “mil e uma noites” que torna possível imaginar que seja uma obra infinita, o que virtualmente ela é, pois cabem mais mil e uma noites dentro dessas, como diz Borges: “os arábes dizem que ninguém pode ler as mil e uma noites até o fim”, mas não porque não conseguem, porque ela dá a sensação de infinitude.
Borges (pg. 78/79) explica que esses contos perpassaram por vários povos, o que de certa forma torna mais complexo esse movimento de oralidade, trazendo mais elementos que são conflitantes e tornando essa “lapidação” ainda mais rica em pluralidades, temas e composições. Em determinado momento diz: “Esses contos devem ter sido fábulas. Suspeito, aliás, que o encanto das fábulas não esteja na moral”. É importante esse destaque para as fábulas pois elas são pequenas histórias, também em algum nível, abertas, que permitem emendas, cortes, que trazem em si também elementos mágicos ou fantásticos como a possibilidade de animais falarem entre si ou com humanos, de animais serem antropomorfizados, entre outras fatos. E o que se vê nas “mil e uma noites” é isso: uma história que permite entradas do mundo fantástico, seja com lâmpadas mágicas, anéis, ou com poderes de gênios ou de deuses. E o que seria essa magia? Um tipo de causalidade diferente, uma relação causal até então estranha, típica dessa concepção do mundo do oriente. A diferença entre a fábula e as “Mil e uma Noites”é que a fábula ganhou um tom moralizante, principalmente ao serem traduzidas pela idade média nos mosteiros (onde até acrescentaram uma frase contando a moral da história), enquanto que as “mil e uma noites”, reunidas no séc. XV e traduzidas pela europa na auge do neo-classicismo, mas que quase cita o romantismo, foram interessantes pela estranheza, pela diferença das obras da época, ela era livre e permitia ao imaginário viagens, ao contrário das fórmulas até então vigente de Boileau, baseadas na Arte Poética de Aristóteles da “grande arte”.

A oralidade permite, então, que o imaginável e o imaginário estejam presentes como marca de espaço, tempo, ação e temas. Tudo está dentro de sua estrutura, nada é permeado por regras, dogmas, estruturas fixas, pelo contrário, a oralidade permite que tudo que a mente conseguir conceber esteja envolvido em todos os processos dessa história. A mil e uma noites não são apenas histórias transmita oralmente e depois transcrita, ela faz parte da história do que somos enquanto pessoas, nossas crenças, nossos mitos e nossas profundezas inexploradas. É o registro do que foi nosso pensamento e da base de um pensamento atual que ainda nos permeia, por isso é tão contemporânea e tão presente, por isso que é fascinante, porque as “Mil e uma Noites” ainda não chegaram ao fim.
referência - Palestra de Jorge Luis Borges, "As mil e uma noites"
Nenhum comentário:
Postar um comentário