27 abril 2009

o picolé

No meio da rua dois cachorros brincavam. Pequenos, frágeis, ficavam a se cheirar, morder cada vez mais forte até doer e rodar ao redor do próprio eixo. Estavam bem alimentados. Atrás deles, em pé, conversavam uma mulher e um homem, donos dos respectivos animais. Falavam deles, de como comiam, viviam, brincavam, mijavam, sabiam com detalhes cada atividade diária deles, e agora já não podiam precisar se foram eles que impuseram aos cães essas atividades ou se foram eles próprios que as escolheram para si. De qualquer forma, é provável que nenhum deles estivesse disposto a alterar essa ordem.
Primeiro, passou ali uma mãe puxando pelo braço um menino melequento, barrigudo e de grossos óculos.
-Que péssima mãe! - disse a mulher
-Péssima e ninguém fala nada. - responde o homem
-Como pode meu deus, como pode...

Depois um carro vermelho cruza a rua e buzina para enxotar os cachorros.
-Olha como dirigem – diz ela.
-Como monstros assassinos – ele.
-Podiam matar alguém.
-E ninguém faz nada.

Permaneciam ali defronte dos cães a falar do que cruzasse a rua, como se houvesse tempo, não esse que percorre nossas vidas tecendo relações, mas um outro relativo às coisas dentro delas mesmas, em relação a si próprias, como se fossem o apocalipse do mundo: um mundo sem fim. Quando vira na esquina um homem forte, alto, gigantesco. Vem com passos pesados que podem ser sentidos ali onde estavam homens e cães. Esses correm para dentro, acuados, enquanto que aqueles permanecem estáticos, pois pareciam hipnotizados pelo olhar, um olhar que agora parecia estranho. Mais de perto podem ver que o homem se veste com uma calça jeans e uma camiseta grande demais para seu gigantismo, o tênis vermelho tamanho 48 parecia cruzar o horizonte. Podia-se ver também que na mão dele estava um picolé de uva, pela cor roxa, que parecia minúsculo entre seus dedos. Na primeira mordida ficou a impressão de que todo picolé se fora, mas não, ele crescia na medida que o homem se aproximava.

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