25 dezembro 2010
O natal
Sei que a vida não é feita disso, pelo contrário, ela é árida, dura, seca e na maioria das vezes ruim, mas isso faz parte de um engajamento necessário para transformação. Se aceitarmos que ela é ruim, podemos mudar, se nos deixamos tocar por esse sentimento bom, ficamos achando que tudo deve estar como está.
É uma excelente duplicidade: se sentir bem, apesar de saber que o mundo não é bom assim e poder transformar nossa vida e a de muitos. O natal é político, ou poderia ser.
19 dezembro 2010
isso idéias nisso
Nossas idéias são como sobremesas. Não servem pra saciar nossa fome de vida, mas para adoçar nossa saciedade. Essas idéias, quase que sempre mirabolantes, dão um gás pra encarar o asfalto, na verdade, elas abrem um buraco negro na rua, e nos carrega pelos braços pra um outro lugar. Quando se vão, resta-nos somente nós próprios e uma vontade de escrever ou contar pra alguém. No entanto elas somem, evaporam, desvanecem e fica-nos uma sensação de fracasso, de perda, de esquecimento. É triste. Talvez a morte seja o fim de nossas idéias, ou então, finalmente a concretização da nossa maior e recorrente delas. Imagina se a gente não estivesse aqui?, atire a primeira pedra quem nunca pensou nisso.
Sim, é de propósito que eu começo o texto com isso e termino com nisso, mas não, não atirem a primeira pedra. A primeira pedra é sempre do culpado, todas as outras são de Maria vai com as outras.
27 novembro 2010
os livros
É tanto nome que diz tanto que às vezes penso que o ser humano é criador nato. Ele relaciona tudo a tudo e todos os nomes estão juntos num imenso cesto e vamos ligando-os tal como numa poesia dadaísta. Tanto que "Todos os Nomes" é um livro do Saramago, onde realmente todos os nomes estão lá, menos os das personagens. Excetua-se um: José, espécie de alterego ou não. "Vidas Secas", "Estorvo", "Sagarana", e os títulos nao param de dizer coisas e eu todos os dias vejos esses livros que também me vêem.
É em nome deles que eu escrevo. Um dia algum livro meu pode dizer alguma coisa. E hoje eu diria que...nós...somos demasiadamente violentos. Ô raça ruim essa dos humanos...e que coisas lindas eles escrevem.
18 novembro 2010
prefácio
Li e reescrevi tirando alguns exageros a peça “José” escrita dois anos atrás. A primeira pergunta que me fiz agora é porque José tem esse nome. E são vários os motivos, o principal é que trata-se do meu primeiro personagem de teatro, uma gênenis da minha escrita, então o nome José me pareceu apropriado. José é o pai de Jesus e somos obrigado a ter essa lenda sobrevoando constantemente sobre nossas cabeça. José é o nome de meu pai e o nome do meu avô. José é o nome de Saramago, talvez o escritor que me fez ter o maior impacto estético e o sujeito que me fez ter vontade de ser da literatura. José também é aqui um nome anônimo, José da Silva, um nome que serve pra exemplos. “E agora, José?”A festa acabou,a luz apagou,o povo sumiu,a noite esfriou.”, diz Drummond. “Todo dia um ninguém José acorda já deitado.”, diz Camelo. “O espinho da rosa feriu Zé, O sorvete e a rosa, ô, José! A rosa e o sorvete, Ô, José! Foi dançando no peito, Ô, José! Do José brincalhão, Ô, José!...” , disse Gil.
José é tudo que me fez nascer, me compõe José sou também eu. No entanto, é importante dizer, acima de tudo é que José é um cidadão. É um anônimo cidadão, um ser político que trafega pelo mundo e que se estanca e se vicia e que se torna absurdo não por motivos puramente pessoais, mas públicos, pois José também é todo mundo. José trabalhou, José foi aposentado, José, não se sabe como, comprou esse apartamento em um condomínio de luxo e se vê sozinho onde tem tudo. Já era sozinho, mas era obrigado a trafegar, agora não mais.
José é o próprio tráfego, é a própria rua e sua autoestrada é si mesmo. Como muitos de nós.
Shelley diz: “Um poeta participa no eterno, infinito, no único; até onde concerne às suas concepções, o tempo, o lugar e os números não existem.” Se isso for verdade, espero nunca ser poeta, porque o que escrevo é do presente, o maior presente do mundo e esse infinito, esse eterno que atribuem ao poeta é só uma forma de aliená-lo. Não existe saída possível: ou se escreve desse nosso presente ou, mesmo falando, se faz silêncio.
17 novembro 2010
prólogo
A verdade é que não me lembro desse conto de família e tenho certeza que minha mãe sabe, mas preferi nunca perguntá-la. Sei que era sobre um pássaro, acho que um papagaio, que era maltratado pela sua dona. Ela não reparava nele por ele ter feito alguma coisa errada e deixava-o passar fome. Todos os dias ele dizia: “Tô fraco, sinhá!”. Prestes a morrer dizia : “To fraco, sinhá! To fraco, sinhá!” Por fim, morria. Não lembro com precisão, mas acho que sim. A história era muito triste e minha mãe dizia que sempre chorava assim com essa história. Ela e seus irmãos.
Eu queria saber mais e minha mãe dizia que eram várias histórias que a Vozinha contava na cozinha antes de todos dormirem, algumas felizes, outras tristes. Muitas faziam chorar. Eu não entendia dessas histórias, me pareciam ter acontecido em outro mundo e eu tinha medo. Via televisão para esquecer e tinha sonhos estranhos. Quando acordava ficava pensando num pássaro que dizia “Tô fraco, sinhá!” e pensava que se os pássaros pudessem falar três palavras antes de morrer seriam sempre essas.
Pra mim, todos morriam igual, fracos e sem poder voar...como os pássaros.
15 novembro 2010
cachorro porco
Cachorro porco
Você só faz coco
Cachorro do morro
Te ensino a mudar
Cachorro teimoso
Todos vão te chamar
De cachorro porco
Põe rolha no bumbum
Apaga o teu fogo
Sai daqui, sai fora do meu lado
Senão eu mando te castrar
Saí daqui, estou desesperado
Senão sou eu que vou te matar
Assim você não vai me atrapalhar
Sai daqui, sai fora do meu lado
Eu mando a carrocinha te pegar
Saí daqui, estou desesperado
Senão sabão tu vai virar
Você é um horror
Cachorro do morro
Eu não vou te mudar
Cachorro teimoso
Sai pra lá, sai daqui
Acabou o teu jogo
11 novembro 2010
o anão 2
De repente um barulho atrás de si. Tentou se virar, mas não foi capaz, então pulou do banco para olhar. Quando se virou, dois meninos vestidos com uniforme de hóquei estavam atravessando o calçadão, um de vermelho e outro de azul. Corriam com muita destreza e o primeiro que com seu taco conduzia o disco mantinha no rosto um sorriso maquiavélico. O anão tentou se encostar na mureta, mas quando os dois passaram, esbarraram nele que virou uma cambalhota e sem controle caiu sentado na areia.
Filhos da mãe, gritou em bom som e logo se levantou indignado. Avançou na perseguição dos rapazes. As pernas curtas demonstraram que nunca iria alcançá-los, mas o ímpeto e a raiva prevaleceram. O rosto em poucos segundos se encheu de suor que se espalhou pela camisa, formando uma escura e densa marca molhada que se misturou a quantidades imensas de areia que haviam grudado na camisa, mas que os pequenos braços não eram capazes de espanar. Desistiu de caçá-los, jovens são assim mesmo.
Acontece que logo quando ele desistiu os rapazes voltaram a se aproximar. Agora o outro liderava o disco com o sorriso endemoniado e o outro seguia atrás. Ao passar, viraram o rosto para o anão que estava xingando, mas não conseguiram ouvir coisa alguma.
O anão voltou a correr atrás deles e os viu se afastarem. Quando de uma esquina apontou um mini-carro de golf com dois policiais nele. Nervoso ele apontou para a direção dos rapazes dizendo: “atrás deles.” mas pelo visto era ele o suspeito.
O carro parou ao seu lado e os dois policiais saltaram.
Você está brincando com autoridade, baixinho?
Não senhor, foram os rapazes, senhor. Me acertaram.
Que rapazes?
Os dois de patins.
Os policiais olharam para os dois lados, mas os rapazes haviam sumido.
O senhor está bêbado, senhor?
Não. Os dois passaram aqui jogando e me derrubaram, por isso estou sujo. Fui atrás deles, por isso estou suado.
Você acredita nele?
Eu não e você?
Eu também não.
Mas seus guardas, eu estou falando a verdade. Pode perguntar pra qualquer um, deve haver uma testemunha.
Olhou para os lados e quase não viu ninguém por perto. Na verdade, um grande silêncio prevalecia e era possível ouvir o som das ondas quebrando no mar.
Isso aconteceu tem muito tempo, senhor?
Não, foi agora agorinha. Tem 2 minutos. Eu estava sentado olhando o sol quando veio o barulho.
O Sol? Mas o sol já se pôs, senhor.
Não tinha ainda percebido isso, mas era verdade. Estava escurecendo o que devia aumentar seu aspecto suspeito. No entanto, aparentemente cansados os policiais se sentaram no meio fio, ficando quase na altura do anão que tentou falar alguma coisa que foi interrompida por um policial.
Está liberado.
Assim? Você não vai atrás deles?
Não há ninguém, senhor. Volte para casa, tome um banho e descanse. Tenha um pouco de dignidade e boa noite.
O anão baixou a cabeça, deu um “Boa noite” constrangido e se retirou dali. Passou pelo banco e pensou em sentar novamente para agora olhar a lua, mas desistiu. Era já hora de ir para a casa e, talvez de propósito, talvez sem querer, foi andando na direção contrária de seu caminho.
10 novembro 2010
a mão que cai
Um homem corre por uma calçada. Tem pressa, usa uma mochila e está suado, só isso que se pode dizer. Passa por um muro coberto por uma relva rasteira e algumas flores como adorno. Faz sol e a corrida é extenuante, tanto que para o homem que está acima do peso parece não ter fim.
Alguns passos a frente, avista uma pequeno galho que cresceu mais que os outros e expôs uma flor em seu caminho. O homem passa por ela e dá-lhe um tapa. A flor cai e sua mão fica junto. Ele interrompe a corrida no ato afim de tentar recuperar sua mão, mas não é possível: ela está inseparavelmente colada à flor.
Ainda com pressa, pois não pode atrasar para seu compromisso, pega com a outra mão a flor e a mão do chão e carrega junto consigo. Estanca mais alguns passos e guarda ambas na mochila.
Do outro lado da rua, havia três testemunhas do ocorrido. Dois homens e uma mulher que não se furtaram de emitir opiniões a respeito do ocorrido. “Uma lástima”, disse um, “não se fazem mais mãos como antigamente. Hoje em dia tudo é descartável.” “Pobre homem”, emendou o outro, “porque aquela flor foi se meter justamente entre ele e seu caminho? Ele andava tão apressado, deveria estar indo resolver algo muito grave. Um caso de vida ou morte.” “É bem feito”, disse a mulher, “quem maltrata a natureza devia ser preso, perder a mão, o braço, para aprender. Foi um exemplo para nossas crianças.”
Acontece que os três se despediram e propagaram a história para mais pessoas. A mão que caiu parece significar agora tantas coisas e ter tantas possibilidades que o próprio ato da queda da mão com a flor em si parece ter se perdido. Ninguém atentou que o homem que perdeu a mão pode ter ganhado uma flor. Ninguém pensou que aquela flor podia ser útil porque ele estava atrasado para um encontro com sua namorada.
Não se pensou no homem, não se pensou na flor, muito menos na mão, mas somente que aquilo era alguma outra coisa. E era. O homem, logo ao dobrar a esquina, abriu a mochila pegou sua mão e colocou de volta no lugar. Com um sorriso no rosto teve todo cuidado para não expor as muitas cartas que estavam escondidas por detrás de sua manga e a pressa toda era que, infelizmente, uma criança provavelmente ia ficar sem mágicas em seu aniversário.
28 outubro 2010
a profissão
Era um sujeito que estava pronto a arranjar uma profissão, mas não sabia como fazê-lo. Seu pai engenheiro e a mãe professora pareciam exercer profissões que já haviam sido ruminadas por séculos de gerações. Aprendera, no decorrer da sua vida, que era uma pessoa única, especial, que deveria fazer aquilo que o coração manda porque era diferente de todos os outros e em todo mundo não existia nada, nem traço nem rastro de qualquer coisa que fosse similar a ele. É claro que não concordava, mesmo porque aprendera na aula de genética que a diferença entre um ser humano e um macaco era de menos de 1%. Ele até concordava com isso, via as similitudes e parecências, muito embora os macacos, do lado deles, parecerem não se importar com esse assunto que para os humanos era tão aflitivo.
Enfim, era um rapaz que aprendera a ser ele mesmo e quando foi escolher uma profissão só havia coisas que outros também faziam. Era um paradoxo. Advogado? Mas já há tantos deles no mundo, andando de terno, falando difícil e tratando mal as pessoas. Médico? Quantos já cuidaram dele, pediatra, ortopedista, urologista, todos de branco e com uma fala mansa apesar da letra bruta. Bancário? Assim como todos aqueles senhores que ficavam atrás daquele computador contando dinheiro e botando numa caixa que aparecia vazia no dia seguinte sem nem ao menos lhe explicarem para onde e para quem fora toda aquela grana. Ia listando uma a uma as profissões e já havia gente demais em todas elas e parecia não haver uma para ele.
Andava pelas ruas olhando e pensando no que poderia fazer. Poderia até inventar uma profissão nova, mas para isso deveria ser inventor, profissão antiga. Artistas se amontoavam também, além de que a maioria deles parecia insensível e egoísta. Sentava na praia e via tanta gente também sentada que chegou até a pensar que estavam passando pela mesma situação que ele, mas não, estavam apenas desempregados: era uma consequência de tanta gente fazer a mesma coisa, sobrava gente para coisa.
Não fazia sentido em sua cabeça essa lógica de profissão, se havia mais gente que profissão, tanto que muitas pessoas nem conseguiam trabalhar, porque então haveriam de escolher logo aquilo para fazer na vida? Escolhe-se uma profissão para trabalhar nela, não para ficar a toa com ela. Profissão não era uma posse, mas uma atividade.
Até que de pensamento em pensamento resolveu estudar que não era uma profissão. Passou a vida inteira estudando, sem nunca ao menos ter trabalhado. Vivia de dinheiro, migalhas, livros e atenção dos outros. Aos poucos foi lendo cada livro que existia, sempre fazendo anotações e escrevendo teorias sobre eles. Depois de cinquenta anos era a pessoa mais culta do seu país, e mesmo sem saber disso pois tinha vivido numa letargia social por tanto tempo, resolveu fazer um pronunciamento. O que sabia era útil para o mundo: bateu nos jornais, revistas, televisões e rádios e não foi recebido. Escrevera um discurso de quase oitocentas páginas que mal conseguia carregar sozinho e queria que todos soubessem o que havia aprendido em toda essa vida de dedicação e estudo. Eram palavras doces e duras, de uma sabedoria que só um homem que, por um lado estava entranhado do mundo e por outro havia se guardado dele poderia escrever. Entretanto ninguém ao menos chegou a recebê-lo. Ficava sempre nas portarias e via passar tanta gente bem arrumada e com o rosto tão tenso que misturava o que via com o que imaginara. Em sua cabeça se fundia o sonho antigo de ter uma profissão com a realidade de toda aquela gente. Seu pronunciamento, seu discurso e tudo que aprendera era tão precioso que parecia ser inútil. Depois de tanto trabalho, percebeu que talvez tudo havia sido em vão, pois em cada porta que batia, ouvia a resposta da secretária: “O senhor não poderá recebê-lo. Está trabalhando.”
26 outubro 2010
quando você chora
Uma flor morre
Um rio seca
Um domingo acaba
Um jardim alaga
Um arroz azeda
Uma mãe se mata
Uma canção destoa
Uma fruta cai
Um bichinho mata
Um sol se põe
Um tênis rasga
Uma goteira pinga
Uma estrela apaga
Quando você chora, flor
Rio, domingo, jardim
Arroz, mãe, canção
Fruta, bichinho, sol
Tênis, goteira e estrela
Quando você chora
O mundo muda
Eu faço listas
E chove.
24 outubro 2010
pra bom entendedor...
- Como?
- Obrigada. Sabia que vc ia entender...
23 outubro 2010
a invenção da fotografia
Jesus está na cruz. Está todo ensangüentado, uma parte por sangue novo que escorria e outra por sangue seco, coagulado das muitas horas que já estava lá. Ao contrário do que a Bíblia nos disse, ele não estava consciente. Depois de um tempo seus membros que doíam de uma forma nunca antes experimentada, que espetavam pelos pregos mal limpos cravados, começaram a formigar e ele, começou a ter a mente nebulosa.
Primeiro era só algo turvo, mas depois começou a ter visões, como se estivesse na experiência de alguma droga que muda sua percepção do espaço, do tempo, das pessoas e do mundo. Mais algum tempo depois, o formigamento chegou até as pernas, foi quando todo seu corpo parecia ter sido imerso numa banheira cheia de gelo. A partir desse momento, pouco ele sabia do que ali se passava, estava quase desmaiado, balbuciava palavras incongruentes e adentrara num estado de quase morte, meio desmaiado com uma respiração silenciosa.
Muitas pessoas assistiam. Maria e Madalena choravam, seus discípulos entristecidos oravam ao senhor na busca de alguma solução. Sentiam que seguiram seu rei por nada, que ele ali morreria e o mundo se mostraria outra vez injusto, matando os bons. Jesus havia dito que ele faria isso para salvar a todos na outra vida, mas alguns deles discordaram, disseram que vivo Jesus poderia salvar mais gente naquela vida também, porque quanto a outra tanto ele quanto Deus já estavam trabalhando. Judas não, este concordou com Jesus.
Acontece que dessa vez todos que assistiam, aproximadamente 2 mil pessoas, resolveram não ficar paradas olhando Jesus e os assaltantes morrerem para depois tira-los da cruz. Algum deles, talvez um verdadeiro Jesus, levantou e voz:
- Que tipo de gente somos nós que vemos nosso rei ser assassinado na cruz, julgado por nada e ficamos só olhando? Qual o direito que temos, depois de tudo que eles nos ensinou, de somente chorar? Qual o dever que temos por ele e por todos que ele pode salvar enquanto vivo? O livre arbítrio que ele mesmo nos deu deveria servir para que fizéssemos mudar os planos de Deus, porque ele não tem essa escolha: Deus segue os planos apenas dele mesmo sem poder mudar de idéia.
Assim convenceu duas ou três pessoas da sua idéia, mas que não se manifestaram de cara. Então ele correu até a cruz, postou-se de baixo dela e dizendo: “Viva, senhor, Viva!” começou a receber pingos de sangue em sua cara, enquanto tentava retirar algum dos pregos do pé de Jesus, depois achou que salvando os pés Jesus ficaria pendurado, então escalou a cruz abraçando ao Senhor para tentar livrar algum dos braços. O homem chorava, lá de cima bradou: “Como pode um homem fazer isso com outro?” Jesus balbuciou: “Madalena, você veio?”, mas nem o homem escutou, pois já ficava de pé por cima da cruz e fazia um discurso que pouca gente escutou, já que nesse momento o exército romano se aproximava para averiguar o rumor de levante popular. O homem já ia tirando algum dos pregos do braço direito de Jesus quando uma lança atingiu seu peito. Caiu morto em segundos, seu corpo ainda se prendeu junto ao de Jesus, mas foi retirado e jogado logo atrás dele, como exemplo para outro que tentasse a sorte.
Assim se deu. Um dos homens que assistia empolgado com o discurso daquele primeiro resolveu atacar um homem do exército, quando chegou próximo, o soldado tentou afasta-lo, mas ele correu e tocou o pé do Senhor, foi quando uma espada cortava sua cabeça que rolou morro abaixo. O corpo sem cabeça foi jogado junto ao do primeiro homem. Do povo, então, outro homem veio correndo e foi rapidamente abatido, e assim vieram em duplas, trios, até que um grupo de dez homens tentou salvar Jesus, que com a vista turva confundiu todo o movimento com uma alucinação. Atrás de Jesus havia uma pilha de corpos já. Não se podia mais aceitar aquilo e sucedeu que em meia hora uma pilha de corpos mutilados e ensangüentados acompanhava a crucificação de Jesus. Nem Maria nem Madalena se mexerem, permaneceram chorando e rezando, olhando para o céu e para Jesus, como vítimas de uma grande injustiça. Os discípulos haviam saído para almoçar e quando voltaram julgaram tarde demais para alguma coisa ser feita.
Passou o tempo e os guardas já se cansavam de matar homens que tentavam salvar o Senhor. Dois deles foram abatidos e seus corpos jogados junto da pilha. Jesus era acompanhado por mortos até sua canela e essa proporção só crescia. Assim que a rebelião acabou e quase mil e quinhentas pessoas havia sido morta pelo exército romano e jogada por detrás da cruz e depois que as outras quinhentas resolveu fugir, o exército se foi. Junto da cruz havia a mãe, a amiga de Jesus, dois soldados e cerca de cinco discípulos.
Jesus morreu sem silêncio. Julgaram ouvir alguma coisa, mas talvez fosse um lamento de algo dos corpos que talvez estivesse com vida. Era mais fácil que numa pilha de mil e quinhentos um houvesse sobrevivido do que imaginar que um homem por dias na cruz falasse.
As mulheres tiraram o Senhor da cruz e o limparam. Choraram por horas e o enterraram. Um dos soldados, que não era um muito feliz com essa profissão, lamentou não ter um aparelho que pudesse registrar a imagem de Jesus com a pilha de corpos no fundo. “Aposto que vão contar essa história diferente, aposto”, pensou. E foi assim que pela primeira vez alguém teve a idéia de inventar uma máquina fotográfica.
20 outubro 2010
os olhares da política
Estava pensando no olhar dos políticos em público. No que eles nos dizem, tentam dizer, no que eles passam ou precisam passar. É como se, mais do que ter um olhar próprio, eles tivessem que possuir um olhar neutro, mas um neutro engajado, um neutro cheio de energia, que seja capaz de sorrir, ficar sério, triste, indignado.
08 outubro 2010
Terra Sonâmbula
(Terra Sonâmbula, 2007)
• Título em inglês: sleepwalking land
• Direção: Teresa Prata
• Roteiro: Mia Couto (romance), Teresa Prata (adaptação e roteiro)
• Gênero: Drama
• Origem: Moçambique/Portugal
• Duração: 95 minutos
• Tipo: Longa-metragem
sinopse:
Muidinga é um menino sonhador e seu maior desejo é encontrar a família, de quem se perdeu no meio da guerra civil em seu país, Moçambique. O menino lê num diário, achado ao lado de um cadáver, a história de uma mulher que está num navio à procura do filho. Muidinga se convence de que ele é o menino procurado. Parte atrás dela, contando com a ajuda de Tuahir, um velho cheio de sabedoria. A estrada por onde viajam é mágica: entende os seus desejos e os move de um lugar para o outro, sem deixar que morram antes de alcançar o sonhado mar.
link para download:
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http://rapidshare.com/files/366093210/Sleepwalking_Land.part2.rar
http://rapidshare.com/files/366097618/Sleepwalking_Land.part3.rar
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30 setembro 2010
festival de cinema ou Rio de areia
O festival de cinema da cidade do Rio está acontecendo e por toda a cidade fica aquele clima. Pessoas de calça xadrez e óculos grossos andando por aí, comprando entradas antecipadamente e citando a última moda em quadrinhos, o diretor que foi sucesso no festival do Irã e por aí vai. A cidade também se enfeita para o evento: quase em todo poste tem um banner assim como nos pontos de ônibus. É quando me deparo com o cartaz de divulgação.
Trata-se de uma imagem do Pão-de-Açúcar, da Lapa, do Maracanã e de outros monumentos feitos de areia. Mas por quê? O festival não é feito para gringos, não é feito para divulgar a cidade, pra ganhar votos. O festival é para organizar e divulgar uma mídia específica: o cinema. O cinema como forma de integração de várias nações de transações culturais para um público que, pelo menos pretensamente, se propõe a olhar as obras a partir de um ponto de vista menos simplificador. Junto com o cartaz uma inscrição: "Rio: inspiração natural". Inspiração pra quem, meu deus?! Generaliza-se e se perde o que se tem de bom.
Fico chocado com essa constante classificação do Brasil, e por consequência do Rio de Janeiro, como o lugar da natureza, da praia, do futebol e da noite. Fico preocupado de a gente ainda se ver assim, ainda comprar essa ideia que é mais que cristalizada, constantemente reafirmada e habita nosso imaginário em todos os aspectos. O Brasil não é isso, pelo contrário, o Brasil e o Rio vivem em constante tensão com essa imagem. Afirmam a cada momento que não é parecido com ela e que ela é apenas uma visão ingênua, pobre, velha, antiga e dominadora sobre o que somos.
O festival de cinema é o contrário do seu cartaz: um instrumento de derrubar esses castelos de areia, derrubar essa concepção nativista, de que somos um povo areia que vaga pelos ventos. O festival derrubar os castelos e apresenta um novo Brasil: um país que para e por algumas semanas olha o mundo.
29 setembro 2010
diomedes e o fragmento amoroso
28 setembro 2010
não votar em...
1- parente de político.
Há uma tendência no Brasil a uma idéia da política como paternalista e que o governante é um cara que recebe os direitos de decidir por nós e que aquele direito é, de certa forma, totalmente legítimo, quase numa instância divina. Espécie de monarquia, uma hierarquia muito antiga e que não podemos mudar. Nesse estilo, uma idéia de que se o pai tal foi bom, o filho será e assim a gente mantém sempre as mesmas famílias no poder. Isso estabelece um tipo de política que cristaliza estruturas. Então, para o bem votar é preciso ignorar essa idéia de parentesco por mais afinidade possível que se tenha pela pessoa.
2 - Militares.
Os militares governam a partir de leis muito antigas e totalmente ultrapassadas. Acham que um controle ou intervenção ostensiva é capaz de melhorar a situação, como se cada um de nós tivesse que ser constantemente fiscalizado e investigado por tudo que fez/faz/fará. Depois de idéias como de biopolítica do Foucault qualquer tipo de governo desse fica insustentável. Além disso eles geralmente usam demais o termo "tradição, família e ordem".
3- Paternalistas.
Nunca vote em políticos que comparam o governo com uma família. Que tratam o estado como o pai de todos que deve por um lado dar o que ele precisa e por outro controlar e punir quando não forem atendidos.
4- religiosos.
O estado é laico e portanto não deve se prender a qualquer tipo de político com um dogma religioso estabelecido. Quem governar deve ser capaz de ser dialético, de permitir que se veja todas as questões de muitos aspectos e perceber que um estado é plural e que todos estão nele, até quem não pensa como ele.
5- populistas.
Governantes que falam demais a palavra "Povo, a gente, saúde-educação-segurança". Usam de necessidades básicas da população e geralmente se compara a eles dizendo que "os outros querem tirar o que é nosso, mas ele não vai deixar"
6 - oradores
Nunca vote em políticos que tem um discurso absolutamente perfeito. Que consegue te cativar, te emocionar, que consegue ter o dom de dizer o que você pensava e o que pretende que um político faça. O verdadeiro político nunca vai organizar tão perfeitamente um discurso, pois a verdade é que a sociedade é rachada e vive em constante tensão, embate, então se algum consegue organizar tão bem as idéias provavelmente vai ser só falatório.
7- desenvolvimentistas
Políticos que falam excessivamente em desenvolvimento, em crescimento, expansão do capital. É fato que eles vão leiloar nosso país, abrir muitas fábricas poluentes e até desnecessárias. Por um lado vão gerar emprego, por outro vão criar diversos problemas. O político bacana percebe que estamos numa nova fase em que é preciso pensar em crescer com sustentabilidade, pois essa é a tônica desse novo mundo, e qualquer outro crescimento será improfícuo.
8 - carecas gordos.
Temos uma tradição de carecas gordos com cara de ou coronéis do interior de estados nordestinos ou de ex-nerds que estudaram na usp, enriqueceram, casaram com uma loira e mudaram de lado. É o pior tipo de político.
18 setembro 2010
16 setembro 2010
O castelo - Kafka - Noelte
"O castelo (1968) - "Das Schloß"
País: Alemanha
Direção: Rudolf Noelte
Roteiro:
Franz Kafka (romance)
Rudolf Noelte
Maximilian Schell
Elenco:
Maximilian Schell ... 'K'
Cordula Trantow ... Frieda
Trudik Daniel ... Innkeeper's Wife
Friedrich Maurer ... Mayor
Helmut Qualtinger ... Burgel
Link do rapidshare:
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http://rapidshare.com/files/285938199/Castillodel68.part2.rar
http://rapidshare.com/files/285957801/Castillodel68.part3.rar
http://rapidshare.com/files/285975491/Castillodel68.part4.rar
http://rapidshare.com/files/286251617/Castillodel68.part5.rar
http://rapidshare.com/files/286276391/Castillodel68.part6.rar
http://rapidshare.com/files/286292467/Castillodel68.part7.rar
http://rapidshare.com/files/286297383/Castillodel68.part8.rar
Link com legendas em espanhol e inglês.
15 setembro 2010
mina de carvão
Sou um chileno e estou na mina de carvão, preso, e só vou sair em meses. Provavelmente no Natal pra ver Jesus nascer. Não saí, no entanto, hoje pra ver minha filha nascer. Cara, como é aqui? Me pergunto todo dia e não posso escrever. Na verdade não estou escrevendo agora: isso é só um pensamento e por isso sai tudo desorganizado. Estar preso pode dar uma sensação de claustrofobia, mas não, a fobia só existe quando a prisão é passageira, ou de espaço curto, quando é tão longa quanto a nossa, fica tudo bem. A gente sabe se planejar.
A verdade é que eu queria escrever um texto sobre essa sensação, mas não posso. Eu sou um mineiro de carvão e não tenho essa capacidade toda. Estou preso, magro e com fome, penso em processar a empresa. Não dá pra fazer uma grande análise ou qualquer poesia. Se eu fizesse exporia o meu narrador e isso não se faz, não quero que outro fale pela minha boca. Parece que estou no mito da caverna; droga o narrador escapou. Esse texto é complicado mesmo, eu aceito isso.
Ninguém toma banho dinheiro. E o humor é bom. Piada inevitável: pelo menos vou ficar três meses junto com uma mina...e no escurinho.
09 setembro 2010
metamorfoses
O primeiro que se torna o segundo, ao mesmo tempo que deixa de ser um tem a marca dele. Algo como um carimbo de alteridade, ele se relaciona e é analisado também a partir disso. É uma espécie de memória antiga, que quanto mais antiga se torna mais se distancia. Chega um ponto em que o primeiro se torna uma breve lembrança apenas e o segundo passa a ser e viver aquilo que é agora. No entanto, restos ficam, sequelas, marcas, rastros.
O próprio espaço se modifica. Uma vez acontecendo a metamorfose do corpo, todo o espaço também precisa se redefinir. Isso se dá gradativamente, a partir do ponto em que o outro começa a ser realmente o outro, quando a mudança física começa a se instalar em outras instâncias internas, até na constituição global, porque evito e não gostaria de dizer “na mente”, no psicológico desse segundo, mas é algo do tipo: assim que o outro se reconhece como tal, e assim que todo o resto também o reconhece, esse seu espaço também começa a se redefinir, a criar outras referências que outra vez deixam seus rastros e destroços.
Em “A metamorfose” há tudo isso. Gregor, no entanto, já era um distante da família, o único que trabalhava, que estava muito tempo fora, que sustentava todos e até acomodava uma rotina que dependia dele, mas que ele não compartilhava. A própria profissão de caixeiro-viajante exprime esse fato, ou seja, um homem que vai a lugarejos, cidades distantes levando produtos da cidade grande que lá não chegariam. Faz uma espécie de ligação de lugares díspares, coabitando os dois, vendo suas diferenças e, em algum nível, sem habitar nenhum daqueles mundos. Benjamin diz em “O narrador” (pg. 198) que narrador é alguém que vem de longe, alguém que transita pelos espaços e Gregor se torna esse homem em casa: ele traz o mundo externo, o dinheiro, as promessas de futuro, os trabalhos, para dentro da residência onde o pai já não trabalha, a irmã cultiva sonhos e a mãe mantém aquela falsa harmonia. Gregor já é um estranho nessa família e se tornar inseto é levar esse fato às últimas consequências. Ele conta o tempo, o avanço e a modernidade daquela casa. De certa forma, ele se torna aquela casa e o que ela é, fato que começa a mudar com a metamorfose, gerando uma espécie de caos íntimo e mais radicalmente após sua morte quando todos saem para um passeio, único momento externo do livro, única luz em uma obra soturna. Luz que repensa uma vida e depois de uma tragédia quase aponta uma esperança.
A metamorfose tem algo de material, externo, coletivo, social. Ela dramatiza, ou melhor, reencena de outro ponto as características quase estáticas de um mundo apocalíptico.
04 setembro 2010
minha cabeça
Não esqueço uma vez que chamei um menino de "Junior Baiano" e ele veio pra me bater. Me empurrou no chão, veio pra cima de mim e ficou me sacudindo. Não tive reação, tinha feito só uma brincadeira. O professor separou, claro, mas me senti muito ofendido. Alguma coisa ali mudou em mim. Foi quando percebi que as pessoas podiam machucar as outras, se quisessem. Tive uma sensação real de morte, de fraqueza, de impossibilidade. E isso vai se arrastando comigo até hoje.
É...minha monografia sobre Lourenço Mutarelli tem mexido muito com minha cabeça.
24 agosto 2010
texto doce (candy text)
20 agosto 2010
Tarantino
Tarantino é tudo que já sabemos: o diretor hollywoodiano da ação, do sangue, do exagero e dos roteiros irônicos. Roteirista e diretor de filmes como Pulp Fiction, Kill Bill, Cães de aluguel, entre outros, a tônica de seus filmes está na concentração da ação num ultrarealismo, que chega a extrapolar as barreiras do real, dando um toque de quadrinhos ou de animação às seqüências. A concentração da ação é tão intensa, a suspensão da tensão, num acúmulo que se dissolve só através da violência, como se não houvesse outra saída, até que outra cena apareça e o ciclo se comece novamente.
Nesse movimento tudo pode caber na ação: desde um ator que sangra o filme inteiro, no caso de Cães de Aluguel, até os diálogos de um nazista atrás de judeus em Bastardos Inglórios. Tarantino consegue usar a fórmula de Hollywood de produzir filme, ou seja: um espetáculo de ação, com imagens tremidas, tiros, perseguições, drogas, violência, suspense, tensão, adrenalina, etc. Todas essas palavras que ouvimos serem repetidas à exaustão e não sabemos muito bem o porquê. A graça é que Tarantino consegue fazer isso CONTRA o cinema de Hollywood, ele se usa da fórmula para critica-la, para ironiza-la e é uma ironia tão intensa que causa um incômodo até patético na platéia, como nos sangues espirrando em Kill Bill, ou a aposta em que alguém perderá a mão na cena de “Four Rooms”.
E esse uso dele é interessantíssimo porque apresenta alguma resistência intelectual à forma de Hollywood. A platéia que identifica o filme como um filme de seu horizonte de expectativas, ao mesmo tempo, não consegue aderir por completo, e é comum o comentário de que: “é meio sem noção”, “ele exagera”. É que na verdade, não percebem o que Tarantino fez: explorou o mercado e o consumo contra si próprio, criando um estilo de filme popular de qualidade. Soube estar no mercado e entender sua própria mídia. Soube fazer arte e reinventar o cinema, justamente onde achávamos que nada de bom tinha mais para acontecer.
19 agosto 2010
a merda e eu
Eu era fresco pra comer e minha mãe dizia que comida era questão de costume, que comendo três ou quatro vezes a gente acostumava com o cheiro, com o gosto, com tudo. Nunca me acostumei com merda nenhuma na vida. Nunca quis chafurdar, apesar de muitos me recomendarem desde políticos, médicos, nutricionistas e até padres. São os genocidas da merda.
Tenho muitos vizinhos e meus vizinhos têm muitos cachorros. Todos cagam muito e o cheiro se espalha. Cada latido deles me traz o cheiro de merda. Passo quase de olhos fechados, por não poder fechar as narinas. Prendo a respiração, mas aí me forço a olhar. Tem algum imã na merda que chama mais atenção que qualquer outra coisa. É tão repugnante a visão que não consigo me afastar. Às vezes passo e tem três cocos, às vezes quatro. O máximo que contei foram nove, o que me fez pensar que meus vizinhos colecionam merda, juntam e as exibem como troféu, enquanto outros resolvem esconder e fingir que elas não existem. A merda é o preço da vida.
É esquisito, mas em alguns casos assim como no sucesso, a merda também sobe à cabeça.
15 agosto 2010
juízo II ou o conhecimento
- não.
- você é prolixo?
- não sei.
Esse é um ponto meu: uma pessoa não pode ser aquilo que não conhece. É incapaz de inventar uma maneira de ser sem nome, pelo contrário ela se reinventa a partir do que sabe e conhece. Então, uma pessoa com pouco vocabulário, há de ser uma pessoa mais simples, rústica e óbvia, enquanto que uma pessoa com vasto conhecimento pode ser mais complexa, cheia de nuances e subterfúgios. Claro, tanto pro bem e pro mal. Quem sabe mais, sabe também mentir mais, inventar mais, se aproveitar mais dos outros, quem sabe menos faz isso na medida em que é capaz, na medida exata de suas necessidades sem nome.
Vidas Secas do Graciliano Ramos tem isso. A personagem é descrita como pessoa de poucas palavras, que emite grande parte de seus sons em ruídos, e portanto, aprendeu a pensar assim. É simples como seu cão baleia.
Digo isso para completar o comentário sobre o filme "Juízo". Julgam crianças e adolescentes por roubo, furto, homicídio qualificado. E elas não são nada disso, elas sabem que roubaram ou mataram e isso é feio, mas não têm e não podem ter a mínima noção do impacto disso, portanto têm menos responsabilidade. Quando elas dizem: "meu amigo me chamou pra roubar uma bicicleta e eu fui", dizem a verdade. É o tipo de pensamento simples de quem quer uma bicicleta e só. Não há esse problema da cadeia, da prisão de estar erado, da religião. A vida dela, em geral, já é uma merda mesmo, com uma bicicleta fica um pouco melhor, na cadeia um pouco pior.
Só há consciência quando pode ter consequência. Li num conto do Rubem Fonseca que a maioria das menores estupradas gostaram do ato sexual e quiseram repetir por vontade própria, e só se deram conta do horror e do absurdo quando foram pegas em flagrante, ou quando descobriram o que significava aquele ato. Pode ser verdade, não sei, mas fica o registro.
Não defendo ninguém, só tento ampliar os pontos de vista a partir dos elementos que tenho. Só quem sabe um pouco de lei pode escapar delas. Acho que é isso: quando a gente não conhece, só nos resta arriscar.
12 agosto 2010
Juízo
Destaco do filme o papel da juíza que funcionava como uma espécie de advogado do diabo, ou seja, apontava o lado bom das coisas, não para que tudo melhorasse, mas principalmente para humilhar o coitado do delinqüente. A perspectiva dela, de quem teve uma boa família, condições de estudar em lugares bacanas e pintar o cabelo de loiro em salões caros, dando a ela um aspecto de advogada de filme pornô, não permite perceber que aquele sujeito de 16 anos não tem nada na vida dele pra prezar. A relação dele com a família, com Deus, com a escola, com os amigos não é por afeto, é uma relação de dependência, de submissão e lutas de poder. Ele só conhece o mundo por micro-lutas de poder, e assim, num determinado momento usa isso contra aqueles que sempre lhe massacraram, claro, de maneira errada que merece punição. É ruim ver que um rapaz que nunca teve seus direitos preservados tenha que pagar pelos erros que cometeu: quem não conhece os direitos, não pode valorizar os deveres.
O documentário acaba por ser um “mais do mesmo”. Tudo que já se viu sendo repetido, torcendo para que na reiteração se veja o absurdo e assim sendo, alguma coisa possa acontecer. Ok, não acredito nisso, pouca gente ali na exibição estava com vontade de debater o assunto: a maioria estava atrás de horas complementares, outras, sei lá porquê. A verdade é que hoje em dia não há nada que nos motive realmente.
09 agosto 2010
antenor em 1 minuto
Essa história é uma palhaçada: Antenor é um menino mimadinho, riquinho e chatinho que acha que fala o que quer, quando quer. Inconveniente, sabe? A mãe estranha, mas diz que ele é bom, passa a mão na cabeça, então dá nisso: fica sem limites achando que pode tudo, que é diferente. Quando fica jovem não quer ser malandrão, pelo contrário, resolve trabalhar, e muito até. Daí dizem pro melhor dele que ele devia ser bacharel e fazer um concurso, mas ele não! Quer ser pedreiro, metalúrgico, ou seja, é um comunista daqueles. Deve até usar umas drogas, aah deve. Daí ele se apaixona pela filha da lavadeira que ÓBVIO não quer nada com ele: um cara que não tem amigos, que só fala coisa que ninguém entende, é comunista! Daí ele fica na bad do coração e vai andar pela rua, quando acha uma loja de um cara que conserta cabeça e relógio. Bom, na verdade, o cara é o capeta procurando adeptos pra sua trupe. Antenor entra, deixa a cabeça dele lá pra ele consertar e ganha uma de papelão! Ufa! Daí sim ele se ajusta: fica rico, reconhecido, vira ministro, poderoso e dá um pé na bunda da filha da lavadeira que agora quis ele, obviamente. Esse capeta é até gente boa! Até que um dia ele passa pela loja do capeta que tenta devolver a cabeça dele, dizendo que é perfeita, cabeça de fodão. Ele nega, claro, a vida toda boa do jeito que ta. Pelo menos agora ele foi esperto. É...essa história é bacana. Eu gosto desse final. Obrigado.
06 agosto 2010
bentinho II - ficções de amor
02 agosto 2010
bentinho
28 julho 2010
27 julho 2010
Antenor - parte 1 - o projeto e as caixas
22 julho 2010
meios de transporte
- ÔNIBUS?
- nãão, po! Aaaa...
- TREM?
- não, espera. Eu queria saber mesmo, assim, tô só pensando, o que leva uma pessoa a...
- MOTO, CLARO!
- NÃO. Deixa eu falar! To querendo saber o que leva uma pessoa a...a...se matar...
- Aaaah sim, mas isso é óbvio: uma arma!
21 julho 2010
isso.
- Isso.
18 julho 2010
justiça
17 julho 2010
kubrick e a guerra
O primeiro foi "Nascido para matar", filme de 1987.
O filme começa num treinamento de fuzileiros que vão para a guerra do Vietnã. Vendo eu aquele cenário típico de Kubrick, mas com aqueles espaços conhecidos de filme de guerra, comecei por esperar o que tem, em geral, em todos eles. Me enganei. Kubrick usa de um ultrarrealismo, um exagero quase mórbido das ações e dos tipos de personalidades que devem ser neutralizadas, que nos leva a perceber o absurdo que é um treinamento de guerra. Nos leva a perceber todos os erros que vimos no Vietnã. Consegui perceber claramente o que é tratar o homem como estatística, mas não só o inimigo que "comunista" deve ser liquidado, mas também os seus. Não existem homens, não existe humanidade e sociedade, somente uma nação que deve ser honrada até o fim, até a morte. Essa lógica que me parece totalmente tresloucada é a lógica deles. Será ainda a lógica vigente? Aos poucos as personagens vão enlouquecendo de um modo típico, completamente diferente, mas enlouquecendo, perdendo a capacidade de perceber as coisas e, cada vez mais pragmaticamente levados a analisar os fatos. No fim...bom, parece que não tem fim.
O segundo foi "Glória feita de sangue", filme anterior ao primeiro que citei, de 1957:
Nesse filme a questão é do poder. Uma idéia, um desafio, uma oferta de posto é o mote para que um General resolva que os soldados de uma trincheira francesa invadam o chamado "formigueiro alemão". E um exército cansado e abatido depois de 2 anos naquela situação que não sai do lugar não acredita que é possível, nem seus sargentos ou coronéis, somente o General, que passa as ordens e todos acatam. Enfim, a morte de muitos e o recuo de alguns que são julgados por covardia e escolhidos aleatoriamente para o fuzilamento por não honrar a pátria.
Num determinado momento do fracassado ataque o Genaral manda que a artilharia mate seus próprios soldados que recuavam, como se a derrota deles, A MORTE DELES fosse a derrota do general. Conto a sinopse porque só isso já me parece absurdo, todo esse jogo de poder, essa impossibilidade de contestação de explicação, essa completa ausência de liberdade, impedindo que cada um seja capaz de analisar e julgar, faz com que ninguém, nem os poderosos sejam capazes de analisar e julgar. E no fim...mesmo que algumas coisas mudem, o fim é sempre fim. Fim após mais muitas mortes.
Era só isso mesmo que eu queria dizer.
16 julho 2010
2:52
14 julho 2010
morremos porque esquecemos que vamos morrer
13 julho 2010
unha encravada
Unha encravada é uma excelente metáfora pra vida. Pra quem não tem, explico: é quando a unha nos cantos do dedo cresce pra dentro da carne e vai cada vez mais forçando, mesmo que não haja espaço. E a carne, um tanto quanto sólida mas frágil tenta a todo custo impedir que aquele ser estranho entre. Então o dedo começa a ficar vermelho, inflamar, doer, latejar e a gente que, numa vida corrida às vezes esquece de cortar as unhas, tende a futucar com a mão para dar uma leve sensação de descanso, o que acaba por ser, literalmente, um tiro no pé porque começa a inflamar mais ainda e sangrar. Por fim, com uma dor absurda, a gente resolve cortar aquela unha, trabalho que deve ser feito por profissionais que precisam cortar com cuidado, numa forma de quadrado para que a unha cresça de maneira igual. Caso seja em curva uma parte vai ficar pontuda, entrar antes na carne e vai causar mais danos, problemas, sofrimentos.
Acha que acabou? Que nada, quando a unha for retirada, vai ficar um buraco, uma vala, um poço e todo aquele espaço que a unha tinha ganhado da carne vai ficar à mostra e a carne ainda vermelha vai tentar permitir que o sangue circule e começar a relaxar, não sem antes ficar por dias e dias latejando. O buraco lateja, a ausência lateja e demora bastante a curar. Quando cura é por pouco tempo, pois a unha já está a crescer novamente.
Pensem e me digam num corresponde disso nos sentimentos. Eu tenho um escolhido...
09 julho 2010
Eliminando a seleção
Tive vontade de comentar da eliminação do Brasil na Copa do Mundo. Resolvi faze-lo algum tempo depois da derrota para que as paixões ou as subjetividades não interfiram no que eu escreve, muito embora tudo que eu vá escrever será dito pela paixão e principalmente pela subjetividade, porque só isso que o futebol é.
Tá ok, talvez não, existem fatores objetivos no futebol e vamos a eles: A seleção era limitada tecnicamente, o técnico era mais teimoso burro empacado, a CBF como um todo não se importa muito com futebol, tipo igrejas com nossa alma, o Lúcio é um baita líder, mas forjado, um líder meio sem identidade com o país, um bom líder para qualquer seleção, o que não faz dele um líder pra seleção brasileira.
E dizem os otimistas: "mas os resultados eram excelentes". Quais?, pergunto eu. O bom nível dos jogadores brasileiros faz com que eles estejam "acima da média" de muitas outras seleções, então não importa em que torneio estejam, serão favoritos e chegarão perto do título, o que não significa que seja um bom time, não significa nada. Esse "acima da média" acaba por mascarar um fato: ano a ano a seleção brasileira se enfraquece! E de 90 pra cá vem numa decadência sem fim, principalmente depois do filme da era dos craques da linha Careca-Romário-Ronaldo...
No entanto, a seleção atual enquanto sabia que não jogava bem, enquanto se percebeu limitada, conseguiu resultados. Os cabeças-de-área ficavam ali na deles, dando toques pro lado e pro meia (sempre dependendo do Kaká) que puxava um contra-ataque. A partir do momento, e na Copa isso se deu contra o Chile, que eles perceberem que, sim, eram candidatos ao título, tudo foi pelo buraco. O primeiro tempo com a Holanda foi a gota d´água. YES, WE CAN, pensaram no melhor estilo Joel Santana, e foi o fim do Brasil na Copa do Mundo.
A próxima é no Brasil e 4 anos antes já me cheira a fracasso, mas por favor, outra Maracanazzo vai ser dose...
08 julho 2010
bruno
Abraçado com os amigos fazia uma oração. Pedia proteção, pedia conforto, pedia que não importa onde fosse, pudesse sentir a Sua presença agindo na sua vida. Pedia que premiasse seus esforços e de seus colegas. Agradecia pela chance que teve na vida, pelos amigos, pela carreira que até agora tinha sido de sucesso, agradecia a família que tinha e agradecia por tudo que tinha, apesar de não saber nomear. Olhou para o túnel e viu uma luz ao longe, era para lá que iria, milhares de pessoas o esperariam, ali foram para ve-lo, sentir sua força, seus saltos, piruetas.
Terminada a oração, soltou-se do abraço, se abaixou e ajeitou as meias, a chuteira; de pé deu alguns saltos para se manter aquecido, vestiu as luvas, fez o sinal da cruz e num sinal do capitão correu na direção da luz. Viu um mar preto e vermelho gritando seu nome, fez cara de mau, depois sorriu, agradeceu, pensou que hoje era seu dia, que tudo correria bem. Colocou-se debaixo das traves, ajoelhou uma última vez e parou de pensar. O resto era com seu corpo, o resto era com todos, o resto era show, era espetáculo.
Tudo correu bem até o apito final. Foi a última vez que foi feliz, a partir dali nada mais aconteceria, a partir dali a vida era lá fora, e ali sua vida acabou. Seu último momento de vida foi quando olhou pela última vez aquela multidão rubro-negra. O fim da vida chegou, mas a vida ainda durará muitos anos. Porque não é pela oração, pelo que se diz, pelo que se faz: é por tudo que a gente sempre foi e nunca poderá deixar de ser que se paga.
05 julho 2010
segunda
03 julho 2010
Auschwitz
como fazer poesia sem ser corno?, digo eu!
como falar sem dor
como falar sem a ingratidão, a traição
o sofrimento, o corte, a ferida, a morte?
Como fazer poesia sem Adorno,
como fazer poesia sem a dor no coração?
como as crianças que não fazem poesia
e nuas, sem adornos, passeiam pelo mundo
a viver e quando desenham ou escrevem
é tal qual aquarela, exercício do imaginário
porque a poesia não é inocente
nem ingênua
nem pode ser
depois de Auschwitz.
30 junho 2010
herói
24 junho 2010
2:13
Não tenho idéia do que quero escrever e não tenho idéia do que estou escrevendo. Às vezes algo me diz que preciso vir aqui e botar algumas palavras em sequência. Sigo a ordem sem refugar e vou deixando que tudo se faça. Como o mundo foi feito: primeiro a luz, o resto é mole. Porque era a luz que faltava, debaixo da luz somos capazes de ver e fazer tudo, enquanto que a escuridão nos oprime e nos mostra nossos erros.
Tenho vontade de ensinar as pessoas e me odeio por isso. Me sinto presunçoso, como se eu tal como sou, tivesse algo para ensinar a alguém. Eu que devia aprender, me digo, mas vejo que tanta gente precisa ouvir o que já aprendi. Por exemplo sobre Tchekov: seu realismo se rasgando, ele ultrapassando uma barreira que seria tão comum nno futuro, mas ver essa gênesis gera tanto prazer, alguma felicidade. Penso que sei o que estou lendo e sei porque estou lendo. É porque quem se enxega inteiro, não se enxerga. Quem sabe o que está fazendo é estúpido. O ideal é se deixar vagar pelo mundo, com o pensamento discordando de tudo que puder e depois criando outros castelos intransponíveis.
Queria tanto que alguém entendesse, mas a maioria das pessoas que lêem isso aqui esperam poesia, ninguém espera nada. Ninguém acha que um texto pode mudar sua vida, ou melhor, ninguém se deixa mudar por um texto, embora é óbvio que vão dizer que sim, que mudam. Talvez haja alguém sim, tenho essa esperança. Como se cada sessão de cinema servisse apenas pra uma pessoa. É meio solitário tudo isso, são 2:13 da manhã, escovei os dentes e interrompi Tchekov no meio.
O conto é sobre um seminarista que provavelmente se está enamorando, ainda não sei o resto. Tchekov talvez saiba. É tão difícil tentar dizer quando não se tem nada, porém acho que já disse alguma coisa, é que se fez a luz, por algum motivo creio que se fez. Acho que até pude ve-la. Será?
19 junho 2010
os velhos
- Esses velhos não são apenas pessoas.
-São o quê, então?
- São guardiões de um tempo. É todo esse mundo que está sendo morto. - Desculpe, mas isso, para mim, é filosofia. Eu sou um simples polícia.
- O verdadeiro crime que está a ser cometido aqui é que estão a matar o antigamente...
- Continuo sem entender.
- Estão a matar as últimas raízes que poderão impedir que fiquemos como o senhor...
- Como eu?
- Sim, snehor inspector. Gente sem história, gente que existe por imitação.
As histórias para os velhos tem dois movimentos: o primeiro é de vida, contam porque muito já viram, viveram e pensaram da vida. Muito se cansam dela e alguns acham beleza, outros esperam a morte, mas todos sabem do quanto é interessante viver apesar de todo esforço que é conviver anos e anos a fio com o tempo. O segundo é de morte, contam suas histórias por medo de serem esquecidos, de que todo aquele esforço tenha sido em vão, contam e inventam, transformam sua vida em ilusões de vida, em pequenas noveletas para serem contadas. É por isso que há nos velhos uma fascinação quase mítica, os ouvimos como ouvimos um pajé, um padre, talvez nos aproximemos de deus, talvez, bem talvez.
Dizem que a distância aumenta a inverossimilhança dos fatos, então os velhos são os verdadeiros narradores de nós. Enquanto que os jovens vivem e os adultos se imitam a si mesmos e a imagem que têm de si, os velhos nos contam, nos guardam e com distância sabem nos ver.
É dessa sabedoria que sinto falta. E está de novo Saramago em minha vida.
ps: Mia Couto é um escritor moçambicano, todos deviam ler, principalmente "Terra Sonâmbula". Talvez em breve eu poste uma análise que fiz do livro, mas só talvez.
18 junho 2010
último dia de José
Saramago - 18 de Junho
Não sou uma pessoa que lida bem com as coisas. Não tenho grandes lembranças dos meus avós, nada que me marcasse a ponto de ter aquilo como parte integrante de mim. Lembro no máximo de um cheiro, de uma comida, de umas palavras, mas nada que me faça ser o que sou hoje. Entretanto, esse velhinho, audaz e frágil, irônico e engraçado, forte e sútil, também sou eu. Foi ele que me ensinou a escrever, me ensinou a pensar e me levou às melhores viagens que tive na vida. Lembro que o Sr. José acompanhou minha vida por muitos meses, numa batalha ferrenha entre texto e eu, que no fim perdi e vi o Sr. José, um outro já, emergir na escuridão. Lembro também de Pedro Orce, com o cão sempre ao lado, morrendo ao mesmo tempo que aquela imensa jangada ibérica parava no meio do oceano e lembro também de ali ter nascido uma árvore. Lembro das viagens de Ricardo Reis por Lisboa e das imensas conversas dele com Fernando Pessoa, ou seus passeios por entre os eventos urbanos. Lembro também do pobre Caim, do cão das lágrimas, da mulher de óculos, de Joana Carda, de jesus e até do senhor deus e de todas as pessoas que passaram na obra dele, pois Saramago também era todos eles.
Enfim, Saramago é tão próximo de mim que é um parente, meu avô, minha maior referência, a única pessoa que quando dizia algo eu parava pra escutar, com a admiração de um aluno e o respeito de uma criança. Ele fazia um obra contemporânea parecer clássica e isso me fazia tira-lo do tempo, ve-lo quase como alguém que de outro mundo vem para escrever sobre esse, quase profético.
E agora que ele sumiu, pois um ateu nunca se rende e não seria agora que ele se renderia, vai existir comigo, pra onde eu for e sempre que eu escrever vou tentar fazer jus à ele. Agora que ele sumiu é obrigação minha lembrar também dele e dizer a todos que um homem escreveu, que seu avô era criador de porcos e analfabeto e que ele um dia com as palavras tentou mudar o mundo. E mudou o meu.
14 junho 2010
o tempossentimento
Digo tudo isso porque percebo o que um sentimento faz. Gostar de alguém é como abrir uma fenda no tempo, parece que ele não mais existe de uma maneira objetiva, mas apenas da maneira como o encaramos, seja na saudade - eterno -, seja na presença - veloz. E é essa subjetividade que confunde tudo, nunca sei quando é cedo ou tarde, nunca sei quando é muito ou pouco, vou agindo assim de improviso assim como meu sentimento manda, mas a impressão é de que o tempo é meio que sempre um vilão eterno. Acontece que vem um dia, como o dia dos namorados e põe tudo em ordem, faz o tempo ser amigo um dia e me faz feliz como não era faz tempo. Por isso eu quero agradecer a cronos, que tem sido um bom companheiro ultimamente.
07 junho 2010
gênesis
Depois veio a fuga, um desvio, onde a cabeça precisava descansar e o corpo conhecer coisas novas, se estragar um pouco, ccomo se ao se maltratar se chegasse a alguma liberdade.
Até que os olhos cruzam com os olhos e a fumaça num instante se dissipa. É a nova vida que aparece: a primavera; chega o messias e anuncia a nova aurora que nos abarca quase como num filme bom ou numa lembrança de infância.
No fim, chega o resto, toda a felicidade que a primeira luz fez aparecer. Não há mais fumaça ou desvios, não há mais. É como se a bíblia se tivesse esquecido do apocalipse e ninguém mais fosse culpado de nada, é como se tudo que houvesse de bom na vida se explicasse por uma palavra, que simples sai da boca da menina: sim.
04 junho 2010
da poesia
Se dizem de sonhos, mas me parecem de mim
Estico e esgarço-as, nada sobra
Eu sobro.
A poesia que imagino e que não vivo
Seria poesia de outro, de fora
De quem não sabe que diz, e rima
Incessantemente palavra à palavra
Aí eu olho o computador e vejo as linhas
Que lembram poesia pela forma
Mas não parecem nada e não são.
Sinto vontade de falar palavrão...
Finalmente eu lembro o que me fez vir aqui
Queria escrever sobre esse outro
Esse sentimento imenso e feliz
Que faz que a poesia seja eu
Enquanto quero que ela seja de outro
E é nesse esforço que é sentir –
Quando toda poesia parece estúpida
E todas as palavras são ditas
E imensamente repetidas –
Que percebo que é dessa matéria que a vida é feita
Dessa mesmo
Disso tudo
Desse movimento
Que não sei o que é...
31 maio 2010
purgatório
Acontece é que, muito feliz, não consigo deixar de pensar que haverá uma lei da compensação. Acontece que quem muito quer nada tem, quem é vivo sempre aparece, quem avisa amigo é, quem tem boca vai a roma, ou seja, quem faz tudo, quem está em todo lugar, a vida é toda de quem, e quem com ferro fere com ferro será ferido. No entanto, no final sempre fica tudo pra depois, pego meu violão, sento na cama, deixo os olhos (ou as pálpebras?) se fecharem e canto bem devagar a canção: quem tem medo do lobo mau...lobo mau?”
24 maio 2010
a urca
20 maio 2010
decifrar
Ela anda, ela dança, ela fala do presente, do passado, ela conta segredos, ela dissimula, diz coisas que me fazem pensar em um, mas devem querer dizer outro. Ela faz planos e eu penso que gostaria de decifra-la. Imaginem que ela está sentada num banco de praça com as mãos pousadas no joelho, o cabelo longo solto, o olhar expressivo inerte, e o sorriso fechado, trincado. Ela é de uma simplicidade que não consigo acompanhar, é factual, é quase jornalística, pragmática, prática, objetiva, parece quase mediana, mas pelo contrário, sou eu que de uma profundidade cambiante, de uma dialética opressora e fragmentada não consigo pensar em nada que faça sentido. Quando eu penso em decifra-la, penso numa batalha entre esparta e os nazistas, penso em mil metáforas uma depois da outra numa sequência infinita. É como se ela, ao ser quem é, revelasse a mim quem eu sou na maior profundade, ela revela a essência de mim, algo doído que só se dá nessa dialética. E ela continua sendo linda: anda dança, fala do presente, do passado, conta segredos, dissimula dizendo uma coisa que me faz pensar em um mas é outro. Ela planos e eu penso que gostaria de decifra-la. É uma fraqueza, mas é a maior delas...
12 maio 2010
um livro
ela nunca devolveu e eu comprei outro igual.
a ausência daquele livro vive em mim
será que ela leu o livro?
será que ela leu o livro igual a mim?
ou será que ela leu um outro?
será que aquele era diferente do meu?
nunca vou saber.
é engraçado
Acontece é que está passando um futebol aqui na televisão, eu estou sozinho, vi dois filmes hoje, fiz um trabalho e estou bastante cansado de pensar e mesmo assim ainda não fiz nada. Eu gosto de tudo que eu fiz e estou feliz, mas esse "não fazer nada"- porque não há reconhecimento de ninguém - me incomoda, daí eu fico com raiva e digo que odeio todos numa espécie de misantropia. Às vezes as coisas são assim. E já estou profundamente arrependido de ter escrito isso, gostaria que fosse um texto leve, mas saiu isso e está muito chato. Parei, mas que é engraçado, é!
Mil e uma noites
Borges começa sua fala ressaltando o fascínio do Ocidente pelo Oriente que representa o estranho, o escuro, o outro, o inexplicável. Destaca que o Oriente não tem uma noção de história como temos, para eles a história é fluída, cíclica, não existe uma “sucessão de fatos”, por isso que os egípcios eram vistos pelos gregos como povos “de outro tempo”, o que novamente destaca uma espécie de temporalidade, um fato determinante para o interesse na história das “Mil e Uma Noites”, uma vez que esse “mil e uma” não representa exatamente esse número, mas sim, um infinito número, um incontável número de contos que cabem dentro daquela mesma narração de Sherazade. Aliás, essa forma precisa e exata de se manter sempre uma obra aberta e que permite não só a adaptação, mudança e criação de novos contos, como também essa participação plural de vozes que permeiam e adentram a obra, num profundo exercício de lapidação. É nessa obra “aberta” de “mil e uma noites” que torna possível imaginar que seja uma obra infinita, o que virtualmente ela é, pois cabem mais mil e uma noites dentro dessas, como diz Borges: “os arábes dizem que ninguém pode ler as mil e uma noites até o fim”, mas não porque não conseguem, porque ela dá a sensação de infinitude.
Borges (pg. 78/79) explica que esses contos perpassaram por vários povos, o que de certa forma torna mais complexo esse movimento de oralidade, trazendo mais elementos que são conflitantes e tornando essa “lapidação” ainda mais rica em pluralidades, temas e composições. Em determinado momento diz: “Esses contos devem ter sido fábulas. Suspeito, aliás, que o encanto das fábulas não esteja na moral”. É importante esse destaque para as fábulas pois elas são pequenas histórias, também em algum nível, abertas, que permitem emendas, cortes, que trazem em si também elementos mágicos ou fantásticos como a possibilidade de animais falarem entre si ou com humanos, de animais serem antropomorfizados, entre outras fatos. E o que se vê nas “mil e uma noites” é isso: uma história que permite entradas do mundo fantástico, seja com lâmpadas mágicas, anéis, ou com poderes de gênios ou de deuses. E o que seria essa magia? Um tipo de causalidade diferente, uma relação causal até então estranha, típica dessa concepção do mundo do oriente. A diferença entre a fábula e as “Mil e uma Noites”é que a fábula ganhou um tom moralizante, principalmente ao serem traduzidas pela idade média nos mosteiros (onde até acrescentaram uma frase contando a moral da história), enquanto que as “mil e uma noites”, reunidas no séc. XV e traduzidas pela europa na auge do neo-classicismo, mas que quase cita o romantismo, foram interessantes pela estranheza, pela diferença das obras da época, ela era livre e permitia ao imaginário viagens, ao contrário das fórmulas até então vigente de Boileau, baseadas na Arte Poética de Aristóteles da “grande arte”.
Nesse sentido, podemos destacar os povos como uma “escritora” dessa obra, ainda que não configure uma “escritura” da maneira que conhecemos hpje. Essa escrita de efeito curioso, em uma espécie de infinitude, onde cabem contos dentro de contos (o que acaba por se aproximar do gênero “novela”) nos traz uma espécie de vertigem, de sombra, de breu, onde as coisas não são reconhecíveis e portanto se permitem à metamorfoses. Assim, as histórias das “mil e uma noites” também são as histórias de Ulisses, no caso do Polifemo, ou seja, são traços de narrativas que permitem a entrada de outras. Quem sabe todas histórias sejam das mil e uma noites? Quem são nós não fazemos partes dessas noites intermináveis?
A oralidade permite, então, que o imaginável e o imaginário estejam presentes como marca de espaço, tempo, ação e temas. Tudo está dentro de sua estrutura, nada é permeado por regras, dogmas, estruturas fixas, pelo contrário, a oralidade permite que tudo que a mente conseguir conceber esteja envolvido em todos os processos dessa história. A mil e uma noites não são apenas histórias transmita oralmente e depois transcrita, ela faz parte da história do que somos enquanto pessoas, nossas crenças, nossos mitos e nossas profundezas inexploradas. É o registro do que foi nosso pensamento e da base de um pensamento atual que ainda nos permeia, por isso é tão contemporânea e tão presente, por isso que é fascinante, porque as “Mil e uma Noites” ainda não chegaram ao fim.
referência - Palestra de Jorge Luis Borges, "As mil e uma noites"