29 julho 2008

ela, a colher, o feijão e eu

De frente para o fogão e de costas para mim a mulher cozinhava. O cabelo solto de tamanho médio recebia os respingos do óleo com simplicidade; enquanto que a blusa e a calça protegidas pelo avental lhe curvava as costas, dando-lhe um peso maior que poderia receber nessa idade. Era jovem e cozinhava para mim por prazer. Era ela e as panelas, três, uma de arroz, outra de feijão e uma frigideira que fritava um ovo. Com uma colher de pau ela mexia o feijão e lhe dedicava seu olhar, seu braço direito, sua paciência, sua atenção, mas não seu pensamento. Olhando para a panela e para o movimento do feijão começou imaginar, ainda intuitivamente, mas depois com quase certeza sobre como as coisas pareciam ter exatamente o tamanho que tinham. A colher de pau não entrava nem um milímetro onde devia estar o feijão e vice versa, mas mesmo assim os dois ainda estavam juntos.

Aquilo lhe veio como se houvesse descoberto um segredo, automaticamente se tornou inquieta, foi quando sentiu que seu corpo crescia, e se transbordava para fora dele, sentiu que ele estava já em outra direção, chegando quase na sala e sentando para ver televisão. Foi nesse momento que ela se esqueceu de mim.

28 julho 2008

cambaleio

Cambaleante, o homem, menino ou rapaz, em algumas situações todas nossas partes se embolam, saiu porta a fora e se incomodou com a falta de luz, havia um negrume exagerado e suas pupilas dilatadas demoraram a se adaptar à essa nova condição. Tropicava, esbarrava nos postes, às vezes sentia gazes subirem pelo esôfago, mas logo os expelia em alto som, ninguém o poderia ouvir, todos dormiam, e mesmo que o ouvissem, seria somente aqueles que ou o acompanhavam ou poderiam estar acompanhando esse caminho, e por isso entenderiam sua situação. Grita um carro que passa com música alta, e o rapaz gesticulando com os braços que parecia haver se desprendido do cotovelo para baixo, sente vontade de mijar, resolve encostar-se na primeira árvore que encontra, com a mão esquerda apóia o tronco para que não caia e a direita segura o pênis com atenção para que não se molhe. Junto com o alívio físico, vêm algumas sensações, pílulas de consciência, chega a pronunciar algumas palavras em voz alta, para se ouvir, mesmo que a voz lhe pareça estranha e distante, guarda o pau na calça e se vira, apoiando as costas na árvore e observando o pequeno riacho que se formava com seu mijo, sente-se triste por não poder ver a cor dele, primeiro por ser noite e segundo porque havia mijado no barro, no canteiro das plantas. Ouve um som de ônibus e resolve voltar a andar, iria a pé para dar tempo de melhorar um pouco do efeito alcoólico em que estava, haveria de ser um longo caminho e seria de grande ajuda que arrumasse por algum canto algo para comer, sempre tinha fome e fome das grandes, daquela mais animal que racional, comandada pelos piores sentimentos que podia ter, fome de quem come porque é um ato selvagem, como se não mudasse se separar de si e assim se juntasse a qualquer que fossem os outros seres, se cadavéricos mais bem vindos.

26 julho 2008

composição

É uma composição. Traços, gestos e palavras, um a um selecionados com o tempo e pelo tempo selecionados para se tornarem marcas, índices, estruturas. Acontece é que o mundo não gira ao redor dos traços, gestos e palavras e se gira não é em volta deles somente, na verdade a vida é feita de milhões e milhões de variáveis, como se decibéis tentassem encarcerar todas as canções. E depois que estamos compostos é que sabemos olhar para o mundo, encara-lo e percebe-lo como se observa uma criança, um filho ou uma flor, é deles e neles que vemos o nosso tempo, entretanto tudo disso é submisso àquilo que não muda jamais, como se pudéssemos ser Édipo todos os dias de nossas vidas e tivéssemos como destino a tragédia e a cegueira de todo dia. Pelo menos existe o amor, penso eu as vezes nas horas de mais desespero, mas depois me lembro para meu outro desespero que o amor é sentimento demasiado humano pra ser composto, penso que meu grande amor existe para não estar comigo, porque para mim amor é importante. Se eu preferisse o jogo, o dinheiro, a sorte ou o azar estava com meu amor. É a composição como disse, está tudo composto para a tragédia e dela não ainda sabemos escapar. Não, ainda não é isso, ainda é mais fundo. Estamos compostos para aquilo que aprendemos a controlar: ao sabermos controlar o amor, amamos. Por isso quem mais quer dinheiro, mais o gasta e quem insiste em ser feliz jamais experimenta a sensação. Por isso para mim é tão cruel. É uma navalha.

Aprendi a não gostar do Werther por causa dela, mas creio que para ela ele sempre foi um estranho, como se ele fosse capaz de amar de uma maneira que ela nem era capaz de entender, muito menos de amar, o que não quer dizer que ela não ame, eu mais do que ninguém confio na capacidade dela de amar, mas geralmente as pessoas preferem estar no amor mais do que estar amando, do que ver a capacidade que o amor tem de melhorar com tempo e com a distância. E Werther nesse sentido, com uma angústia que eu já não sinto me mostrou agora essas palavras: “Em vão estendo os braços para ela, ao raiar do dia, quando começo a despertar dos sonhos penosos; à noite, estirado sobre a minha cama, procuro-a, inutilmente, se a inocente ilusão de um sonho feliz faz-me acreditar que estou sentado junto dela, na campina, cobrindo de beijos sua mão! Oh, quando, ainda cambaleando de sono eu a procuro a meu lado, tateando, e, ao faze-lo, de repente acordo completamente, e então choro desolado, contemplando amargurado o sombrio futuro que me aguarda.”

20 julho 2008

outras

alguns sofrimentos depois a gente descobre que ele é sempre o mesmo, talvez se chame caminho. Ou então simplesmente hoje seja apenas um sábado frio e eu com uma dor de estômago vou descubrindo outras...

14 julho 2008

contra o arrastão

quando eu saí de casa para estudar não tinha nada, pouco depois tinha tudo, logo depois tinha pouco, agora eu aprendo que sempre vou ser gigante e pequeno, sempre vou ter tudo perto, mas de um modo errante, e por isso, percebo que finalmente agora posso viver bem sozinho e acompanhado, aqui e lá, com cômodos ou sem cômodos, com muita comida ou pouca comida, com medo e sem medo, mas principalmente aprendi que vou ser sempre o pequeno daquele canto pequeno da sala que luta todos os dias da vida para tentar ser um pouco desse mundo grande que nunca vai ser meu. exagerado eu vou, disparando contra o sol, como diria cazuza e como diria eu, correndo contra o arrastão.

10 julho 2008

por não ter mais nada a fazer

se eu fosse explicar o sentimento de solidão fato que não conseguiria e ficaria a vagar e montar imagens que fosse talvez tentar traduzir o que sinto, mas a verdade é que a maior prova da solidão está em sentar aqui, em frente ao computador e olhar um pequeno traço que pisca, e sentir um breve arrepio nos braços, junto com a frase que martela na cabeça: "escrevo por não ter mais nada a fazer."

06 julho 2008

ponto de ebulição

entrelinhas do que me ocorre um simples segundo de euforia e vejo que é nesse momento que as coisas que faço, penso, vivo dão uma guinada, é uma espécie de força vital, de ponto de ebulição, que funciona como catalisador das mudanças que preciso e tenho q fazer. Na verdade, não to falando sobre nada, só esperando esse novo ponto de ebulição, mas isso é mentira, porque não preciso de mais nada, o que eu tenho já é

01 julho 2008

pequenas verdades

rompi para fora da portaria e pela noite me lancei cidade afora, sabia que havia alguma alguma coisa a ver, mas não sabia com quais olhos olhar, sabia que existiria um mundo melhor caso eu estivesse disponível, mas esse mundo do lado de fora, que sempre foi tão meu, me parecia estranho, como se uma janela batasse a meu lado sem qualquer vento ou qualquer movimento, como se todas minhas células resolvessem se voltar contra mim. a noite estava estranha e gritava e eu ao lado dela aproveitava, mas no fundo só esperava amanhecer para curar a ressaca e voltar ao normal.