26 novembro 2011

escuridão

Toco violão noite adentro e só me lembro de ir pra casa quando amanhece. Durmo o dia inteiro e acordo só pra trabalhar em um teatro escuro, sujo. A escuridão é minha amiga, minha profissão. A escuridão é um meio de vida. É como sou, escuro, denso. É só como consigo ser.

23 novembro 2011

ela e o ônibus

Entro no ônibus e sento ao lado de uma moça.
Eu: bermuda caqui, camisa preta, tênis sem amarrar, meia preta, rosto oleoso de suor seco, despenteado, com olheiras e sono.
Ela: pequena, linda, loira, roupinha de executiva, nariz fino dos mais lindos, olhos claros como tinta de aquarela, com os cílios bem pretos, a pele lisa e seca que nem de maquiagem precisa.
Choro. O olho enche de lágrimas que rolam. Poucas, secam antes de pingarem ao chão. Ela:
Porque chora?
A sua beleza.
O que tem?
Machuca, oprime, humilha.
Desculpe - ela faz uma pausa - mas por quê?
Essa sensação de que nada que eu faça - estude, brilhe, enriqueça - me torne um homem mais interessante. Nada disso pode fazer jus a você e sua beleza.
Entendo - diz ela.
Ela abaixa a cabeça e não fala mais. Nem eu. Entendemos. Três pontos depois ela pede licença para descer. Abro espaço, ela passa e, não sem esforço, me lança seu melhor sorriso. O último. E desce.

21 novembro 2011

empate

Tem tanta gente falando, tem tanta gente escrevendo, tem tanta gente pensando que às vezes eu gostaria de dar uma abraço em cada uma delas e falar: "brother, tá pesado, eu sei, mas vamos ver as coisas de um jeito diferente, vamos tomar uma cervejinha." Mas não dá, eu não sei dizer e vocês não sabem ouvir. Cada um compartilha a solidão. Aí eu penso no Flamengo, naquele meio de campo lento, nada criativo e percebo que a maioria das vidas é como o meio de campo do Flamengo: saudoso, melancólico, mas que me traz uma alegria. Minha vida é, então, um campo, bem grande, onde se quiser você pode vir bater uma pelada. Eu te ensino, chega pra cá, dá uma arrancada e faz gol.

a palavra

Bora lá,
vamo que vamo,
então manda brasa.

é quando a lingua triunfa sobre os sentidos.
é quando a poesia perde pras palavras.
é quando a palavra tá gigante,
tá falando muito,
tá reclamando pra caramba.

Daqui a pouco vai querer a chave de casa,
dar uma volta de carro
vai querer sua parte na herança.

estará certa,
vai querer o que é seu.

16 novembro 2011

A Mãe

Baseado em "Orégano"

Estava decidida a se matar. Planejara tudo com antecedência, mas não muita que é como se decidem os jovens. Há duas semanas atrás, sem motivo aparente, sem sofrimentos amorosos, familiares, decidiu que a vida era enfadonha e não valia todo aquele esforço. Lembra-se que estava em uma aula de filosofia e ouvia o professor falar sobre o sublime e a desmedida em Kant e que aquilo lhe parecera irreal: pensava que o tempo e a projeção que se fazia nele impedia a desmedida, afinal o tempo e o espaço eram esencialmente a mesma coisa.
Enfim, uma decisão tão importante nem sempre nasce com regras e ela, jovem e bela, havia decidido se matar e o faria ainda hoje, logo após anoiteicer, assim que terminasse a exibição de Chaves: era esta pureza infantil que queria como último sentimento. Decidiu que morreria com pílulas, era bonita e vaidosa demais para se matar pulando da janela ou se dando um tiro. O gás de cozinha havia sido uma opção, mas queria facilitar o trabalho da perícia em atestar se ouve acidente, falha ou suicídio.
Acordou cedo e decidiu escrever uma séria de cartas. Escreveu a primeira para sua melhor amiga, ficou entediada e decidiu que deixaria apenas uma mesmo, mais alegre, sem explicar demais as razões que a levava ao ato. A única coisa que deixou claro foi que ninguém tinha culpa de nada e que morria por preguiça.
Foi almoçar em um restaurante caro. Sentou-se em um canto movimentado e ficou olhando as pessaoas comerem. Não se sentiu feliz nem triste, lamentou apenas ser uma das últimas coca-colas da sua vida. Lembrou de uma história que ouvira certa vez na igreja. Estava entediada, de novo, e preferiu ouvir dois jovens bonitos que conversavam atrás dela que o padre. Dizia um:
Eu não acredito nisto que o padre está dizendo. Não dá pra saber o que é viver na eternidade, aliás, eu não sei ser de outro jeito além deste.
O outro respondeu:
Tenta engordar vinte quilos, ficar bem gordo e nojento, ninguém vai olhar para você, aí você aprende a ser de um jeito que não esse.
Pode ser – disse o primeiro – mas ser gordo não vai me ensinar a viver na eternidade.
Lembrou dessa história porque agora parecia claro que a única maneira de viver na eternidade era se privando do tempo, ficando sem contato humano algum, nem ao menos através dos meios de comunicação. Agora, isolada no restaurante, tinha a sensação de que viveria eternamente, como se já tivesse morrido. Decidiu, então, mudar de planos e passar a última tarde da sua vida sozinha, como se já vivesse na eternidade prometida não pelos padres, mas sim pelos jovens preocupados em serem magros.
Foi para casa e sentou no sofá. Tentou não fazer nada e não fez por um bom tempo, talvez uma hora na eternidade, sem pensar, só às vezes lembrando de fatos e pessoas que não sentiria falta. Pouco tempo depois, de súbito, levantou, foi até a cozinha e começou a lavar a louça. Queria a casa limpa quando todos descobrissem sua morte. E assim foi, depois da louça decidiu passar sua última tarde fazendo faxina. Varreu a casa, limpou banheiro, jogou papéis velhos fora e até esfregou azulejos que tanto custava fazer enquanto queria viver.
Enfim, terminou e, de novo no sofá, percebeu que começava a escurecer. Eis a hora. Sentiu nesses últimos instantes de vida que podia fazer qualquer coisa e percebeu que gostaria de um último contato humano.
Pegou o telefone, olhou para ele e discou um número qualquer. Chamava. Deu alguns toques, mais alguns e ninguém atendeu. Aquilo frustrou-a profundamente, afinal de contas assim é a vida: “sempre que dependemos dos outros, algo dá errado.”
Não se conteve, tinha raiva e abriu uma cerveja. Bebia devagar para tentar apreciar e dois copos depois se acalmou. Bebeu outra só para confirmar a volta da alegria. O telefone tocou. Sorriu, afinal, atenderia uma última ligação.
Pegou os remédios da despedida, colocou-os ao lado do telefone e atendeu:
Alô? Não, não é daqui, não, não tenho nenhum filho. José? Não conheço, desculpe, é engano, não chore, senhor, é engano. Onde o senhor está? Não chore, por favor, mas não é daqui não, deve ser um número antigo...
Estava perplexa. Não conseguia largar o telefone que repetia aquele sonoro tutututu. Quem era José? E que sofrimento era aquele que vivia? Como pode alguém viver sofrendo assim? Estava tão feliz com essa despedida sua e agora tudo parecia ruir. Como poderia morrer agora por conta de uma aula de filosofia quando um José, aparentemente com idade, ligava para sua mãe e lhe queria tanto e chorava e sofria?
A moça aquele dia não fez mais nada. Não se matou. Uma vida estava salva no reino dos céus e demoraria a chegar naquela aparentemente falsa eternidade. Mas não chegou a pensar nem por um momento que, naquela hora, alguém morria e esse alguém se chamava José.
E José morreu, sem saber que, no último instante, salvara uma vida.

ponto fraco

Um soco na cara. Pow, ou puf, não deu nem pra ouvir o som e tava lá o cara caído no chão, com aquela cara de pastel velho de feira e o outro em pé, imenso, gigantesco, descomunal com cara de vitorioso, se sentindo o maior dos homens do mundo. Era mais bonito, rico, bem sucedido, boa praça e simpático e mesmo assim resolvera bater no outro pobre coitado que pouco sabia porque apanhara, uma piadinha assim fora de hora, mas o que é uma piada perto da beleza, riqueza, sucesso e simpatia? Nada, pensava, mas era muito porque pra quem é bonito, rico, bem sucedido, boa praça e simpático nada pior que um cara pior com um humor ferino e uma inteligência escorregadia.
E o resultado é esse, otário, agora sangra aí no chão, babaca, cuzão. É isso que tu merece por ser folgado e idiota. Triunfal saiu o outro pela porta. “Umbral” pensou o mais fraco.

15 novembro 2011

para pensar

Abro o editor de textos pra pensar, mas não sei como se pensa. Não sei se o que penso é meu ou alguém pensou por mim. Não sei se já tinha pensado nisso antes ou se a ideia me ocorreu agora. Não sei se sou criativo ou repetitivo. Nada disso me aflige enquanto as letras correm e o texto se forma. Nada disso me aflige porque enquanto escrevo estou acompanhado por uma mão muito forte, mas também muito doce, algo que me lembra minha mãe, e me carrega até ao ponto em que nascidas as palavras, atinjo um pouco de paz.

Às vezes acho que estou ficando óbvio demais, mas ainda assim é melhor escrever e ser óbvio em paz do que qualquer guerra.

13 novembro 2011

descanso

quando o cansaço físico
é maior do que o nosso corpo aguenta
e nossos músculos, contraídos,
parece querer desistir
de nos permitir os gestos,
a alma descansa.

depoimento

Fiz um texto imenso sobre ver setenta crianças no palco encenando uma peça infantil que escrevi de cama, doente, imaginando o que agradaria cada uma. Era um texto que falava de todas as dificuldades que é viver e escrever sobre viver. Era um texto sobre uma ingenuidade primeira. Apaguei tudo, que fique só a sensação.

09 novembro 2011

a alma

Tento me ver em meu blog e percebo que, como já disse, muitas vezes não me reconheço. Meu blog não é um portal para minha alma. A minha alma, se existe, vive em uma profundo poço sem portas e sem acesso. Cada vez que tento chegar até ela, lanço um balde e puxo de lá aquilo que desejo e recebo apenas alguns goles d´água de palavras que pigam por todo meu exterior. Isso eu escrevo. Aí quem me lê tem a missão de transformar meus pingos em palavras e depois em sentido e, assim, atribuir alguma coisa a mim ou à minha alma.
Pode parecer ridículo, mas não há tarefa mais solitária do que tentar comunicar a alma com alguém. Ela, intraduzível, é gigante e o outro apenas uma portinhola. É por conta disso que devemos viver como se a alma não existisse e comunicar apenas aquilo que nossos olhos podem ver e o coração sentir. Deixemos a alma de lado, ela é pesada e se vier à tona será através de um sofrimento qualquer. Comuniquemo-nos pelo coração, só com ele, sem as convenções sociais e sem a prática do cotidiano. De resto, deixe que o olho veja, a boca fale, o ouvido escute, a pele sinta, o nariz cheire. E Que o amor construa.

06 novembro 2011

Trem

sou como um trem que joga uma fumaça densa e espessa pela natureza dando um toque urbano-bucólico por onde passa. Paro somente nas estações porque não posso parar. Meus descaminhos desbravam o interior desafetivamente e não chego a me importar com quem chega ou quem passa, embora não deixe de sentir saudades. Em meus vagões vão pouca gente, o caminho que sigo não é de grande interesse, nem popular, nem levará ninguém ao sucesso. Sou esse trem e dele não escapo. Sou esse trem que viaja o mundo, mas que nunca pode sair dos trilhos, pois seus caminhos são óbvios. Mas sou um trem, só isso, um trem entre muitos. E vou quase vazio.

04 novembro 2011

duromole

é preciso olhar pro mundo e endurecer o coração
é preciso ler poesia e amolecer o coração
coração duromole
coração moleduro
duromolemoleduro
é preciso um coração
de água mole
em pedra dura.

sem ti

nada que eu falo faz sentido
nada que eu falo faz sem ti.