28 março 2011

o deserto



A cidade é aquela coisa que a gente construiu por sobre a terra enchendo-a de cimento, muro, parede e asfalto. Não me espanta nem me fascina isso. Não me espanta ver que o homem tem uma tendência a descobrir coisas e depois querer usar as coisas que descobriu pra fazer tudo que quer na vida, então, como ainda não foi inventado nada mais simples e menos feio que o cimento, o muro a parede e o asfalto, vamos convivendo. Também não me fascina porque já estou acostumado a ver esses imensos retângulos por todo lado, sem perceber os contornos da natureza, que por sinal são bem mais fracos que de qualquer construção.
O deserto. Fico pensando no deserto. O deserto é uma área, um território arenoso que o ser humano foge. Não há amizade entre homem e deserto, pelo contrário, os que ali habitam são forçados a isso e sofrem brutalmente a violência dele que oscilando entre calor e frio não permite que ninguém ali se sinta em casa.
As florestas. As florestas são aquilo que o ser humano mais preza. Ganha-se dinheiro pra passar dias numa casa de campo, convivendo com a natureza, o ar puro e com construções menos retangulares e preocupadas com cimento, muro, parede e asfalto.
Por que, então, penso eu, a gente não construiu a cidade sobre o deserto? Podia ter enchido de asfalto por cima do deserto, ter ido morar lá e feito nossas casas e nossas habitações horrorosas como em um acampamento. Até penso na especulação imobiliária: quem mora no morro paga um pouco mais barato, quem mora em vales paga mais caro. E pra ter um oásis, amigo, é...aí você vai ter que ser milionário.
Com isso toda natureza estaria intacta, bela, fulgurante, como nos hinos, nas canções, como nos sonhos. Ainda viveriam muitas espécies extintas, árvores que não acabam nunca e uma qualidade de vida muito melhor. A parte feia e ruim do mundo teria virado a cidade, também feia e ruim. Quem sabe até a gente não adoraria nossas cidades, e até se ouviria de um sujeito: “Olha como é linda...lembra quando do deserto que horror que era?”
Fica a impressão apenas de que a gente abandonou o deserto, fez vista grossa, fingiu que ele não existia, assim como abandonou o sertão e que a cidade cresceu sem se dar conta disso. Assim ela vai crescer, crescer, crescer, até que, se aquele mesmo sujeito, apenas um, em um dia qualquer resolver olhar pro horizonte não vai ter nada pra ver além de areia. É um fato: o deserto vai virar nosso vizinho.

13 março 2011

chute no saco

Todo mundo fala que a pior dor é de crise nos rins. Outros falam que é chute no saco. Nunca levei nenhum dos dois. No máximo uma bolada numa partida do futebol, e porra, é a pior dor. É algo incontrolável, começa nas pernas, chega no saco, óbvio, e vai subindo até doer no suvaco, tipo íngua, sabe?
Quem olha acha graça de ver aquele homem grande, suado, forte, que há pouco gritava palavrões e ameaçava dribles usando da força física, caído no chão, acuado, posição fetal, meio rindo meio chorando por uma bola ter tocado suas partes.
O homem caído percebe sua fragilidade, tanto que não consegue nem pensar em vingança, no máximo quer dar uma olhada pra ver se num vai ficar brocha ou se uma bola sumiu. No mais, ele tenta se recompor e falar: "tudo bem, gente, esquece...acontece." E vamos pro jogo. Claro que ele vai tentar dar uma porradinha no sujeito que chotou a bola, mas sabe que a culpa mesmo é da bola, ou do acaso, ou de deus.
Porque se o destino existe e estava escrito que ele ia ter saco e que uma bola ia bater no saco dele aquele dia, nada melhor que achar deus um vacilão. Se foi por acaso é foda, quer dizer que ele poderia ter ganhado na loteria, mas não, ficou caído 5 minutos com uma dor intensa.
É estranho. Só falta agora ter uma crise no rim.

09 março 2011

avatar



Só assisti Avatar do James Cameron agora um ano depois do Oscar em que ele perdeu para Guerra ao Terror, de sua ex-esposa Kathryn Bigelow. Não gostava da idéia de se gastar milhões em tecnologia para fazer um filme e usar isso como a principal fonte de publicidade da obra.
Agora, um ano depois, preciso assumir que o filme merecia a estatueta de melhor filme. Não por ser um filme maravilhoso ou algo do tipo, mas justamente por ele expor um problema e uma contradição dos nossos tempos. Vamos aos poucos.
A fábula do filme é simples: americanos ambiciosos querem uma pedra localizada embaixo de uma árvore onde mora uma tribo estranha de seres azuis. Para isso tentam negociar dando-os estradas, aulas de inglês e outras coisas. Como não entram em acordo se resolve invadir e matar todo mundo. No entanto, pesquisadores descobrem que é possível através de uma máquina colocar um homem no corpo de um ser deles. Esse ser deve investigar tudo para que a invasão seja perfeita. Óbvio que esse homem é um aleijado, sofredor, que perdeu seu irmão gêmeo e será o herói do filme.
Agora vamos pensar: esse tipo de história é gasta no cinema americano. A estética perfeita, cara e inovadora não dá conta de criar um novo tipo de história. O conteúdo não se adequa a forma e a sensação que fica é que o filme cansa quando a novidade visual também cansa. Essa estética de tudo digital lembra a estética dos vídeos-games que parecem também não saber que histórias contar e por isso se voltam pra histórias antigas, de heróis, de tribos, de guerreiros.
O fato é: o mundo contemporâneo não nos dá boas histórias. Ele é vazio, sem tema, sem foco, sem ritmo, sem vida. Estamos com uma capacidade de dizer porque estamos incapazes de viajar. Isso se dá por tudo é nossa casa, estamos em qualquer lugar à vontade, como comidas que conhecemos, pessoas e estilos de vida. A ausência de histórias faz-nos voltar para trás para busca-las.
Em Avatar isso se torna patético. Gastar milhões e milhões para mostrar um americano que aprende a outra cultura, se encanta, os defende e por fim vira um líder deles. Seria “O último samurai”? Karatê Kid?
A última coisa pra se observar é o fracasso de nossa sociedade. Construímos um mundo perfeito em nossos sonhos e fomos incapazes de os contruí-lo na realidade. Veja o filme e todos aqueles lugares perfeito e dê uma olhada de sua janela. O que se verá é sujeira, poeira, tristeza.
Avatar me disse isso, apesar de não dizer muita coisa.

08 março 2011

carnaval e tragédia

Em Petrópolis não houve carnaval por conta das enchentes que destruíram alguns bairros daqui. A frase que mais se usou foi “Tragédia cancela Carnaval”. Fiquei pensando na justaposição desses dois termos.
Tragédia é o choque de idéias opostas e indissolúveis. É chegar até a verdade mesmo que não seja a melhor verdade. Tragédia é entender a dimensão humana em contraposição com a dimensão natural ou social. Tragédia é entender o tempo, é entender a mudança do tempo e a mudança de tudo quando o tempo muda. É tanta coisa que contribui pra tragédia que é quase impossível que não se vivam tragédias diariamente, porque, no fundo, a tragédia é uma forma do mundo de buscar a paz, mesmo que com o aniquilamento de alguns.
Carnaval é o oposto disso. É a dissolução dessas forças e formas. Muitos teóricos dizem que no Carnaval se permite que o súdito se vista de rei e o rei de súdito e os dois juntos possam curtir uma festa quase fugaz, que dilata o tempo, esquecendo que ele passa. É pegar as forças naturais e deixa-las fluir, chegar um pouco pro canto pra enchente passar. Se chover a gente bebe água. Se fizer sol a gente se bronzeia. Ele não aniquila ninguém, só exclui quem se exclui e crime é tentar lutar contra alguma força.
Talvez por isso, não pude deixar de pensar que em Petrópolis deveria ter ocorrido o Carnaval, porque só ele é capaz de mostrar que uma tragédia destrói sonhos, enquanto que o carnaval os reconstrói, trazendo junto consigo a certeza de que é possível rirr mesmo sem haver graça nenhuma. O carnaval ignora tanto as forças opostas que é até capaz que as encostas se encostem, se fixem e descansem, enquanto que os foliões sorriam pra tragédia, sabendo que a força está dentro deles, porque eles também são aquela natureza.
O carnaval perdeu a chance de vencer a tragédia.

01 março 2011

dormir é filosofia

Há quem diga que as melhores filosofadas são as mais simples. Ok, há tanta gente a dizer tanta coisa, há até quem diga que "hoje o herói aguenta o peso das compras do mês", se referindo ao homem aranha.
Enfim, quero dizer que não gosto da filosofia simples, mas sim da filosofia das coisas simples. Por exemplo, dormir. O ato, o verbo reflete um estado de estar no mundo e um estado de ver as coisas completamente diverso e autêntico de pessoa pra pessoa. E quantas maneiras há de dormir? Não muitas, imagino.
Eu era fresco para dormir. Só conseguia em completa escuridão, em silêncio absoluto e com uma total sensação de segurança. Por conta disso meu quarto tem duas grades, uma janela de alumínio que se fecha e uma cortina azul marinho. Acontece que depois que fui morar sozinho e tive que acordar cedo e passar horas num ônibus tudo foi mudando. Hoje em dia deito em qualquer canto e durmo não importa o barulho, a quantidade de luz e a situação. Quero dormir, durmo.
Aqui no Rio era costume que eu deixasse a janela aberta e quanto amanhecia tinha que levantar pra fechar correndo o risco de não mais dormir. Agora não o faço mais. Acordo quando amanhece e os primeiros barulhos soam, mas penso: vou voltar a dormir, estou com preguiça de levantar.
A única coisa que ainda não superei é perder o sono por raiva. Meus vizinhos têm cachorros, muitos. E são família, não pega bem ficar reclamando, então há em volta de mim muitos latidos e coco, inclusive do meu cachorro que caga e late como qualquer outro. Basta um latir que vira um coro que só termina quando o poodle resolve que parar. Tenho raiva dos cachorros e por momentos dos vizinhos. Isso é a única coisa que ainda me impede de dormir.
Fico pensando que se conseguir aprender a dormir com raiva, o sono vai se tornar a maior ferramenta de minha vida. Talvez porque o que me fez aprender a dormir primeiro foi a preguiça e se agora a raiva também for motivo de sono, pouco me fará acordar.
Um dia, quem sabe, tudo me fará dormir e os momentos em que estarei acordado serão breves, como nos sonhos...como no amor.