30 junho 2010

herói

Quero escrever um conto sobre um rapaz chamado herói. Ele é um cara comum. Ele não é um herói, não quero que ele seja herói. Fica na dele e vive sua vida, querendo um emprego, uma mulher, filhos e, se der, viajar pra praia no fim do ano. Herói não é um herói. É que nosso nome nada tem a ver com a gente, embora muitas histórias tentem dizer o contrário. Principalmente as histórias de herói...

24 junho 2010

2:13

Leio um conto do Tchekov agora. Pela maneira que é escrito tenho a sensação de que nunca ninguém leu esse conto na vida: são muitas palavras, descrições e pensamentos. Parece literatura velha, cansada, mas não é. É só impressão.
Não tenho idéia do que quero escrever e não tenho idéia do que estou escrevendo. Às vezes algo me diz que preciso vir aqui e botar algumas palavras em sequência. Sigo a ordem sem refugar e vou deixando que tudo se faça. Como o mundo foi feito: primeiro a luz, o resto é mole. Porque era a luz que faltava, debaixo da luz somos capazes de ver e fazer tudo, enquanto que a escuridão nos oprime e nos mostra nossos erros.
Tenho vontade de ensinar as pessoas e me odeio por isso. Me sinto presunçoso, como se eu tal como sou, tivesse algo para ensinar a alguém. Eu que devia aprender, me digo, mas vejo que tanta gente precisa ouvir o que já aprendi. Por exemplo sobre Tchekov: seu realismo se rasgando, ele ultrapassando uma barreira que seria tão comum nno futuro, mas ver essa gênesis gera tanto prazer, alguma felicidade. Penso que sei o que estou lendo e sei porque estou lendo. É porque quem se enxega inteiro, não se enxerga. Quem sabe o que está fazendo é estúpido. O ideal é se deixar vagar pelo mundo, com o pensamento discordando de tudo que puder e depois criando outros castelos intransponíveis.
Queria tanto que alguém entendesse, mas a maioria das pessoas que lêem isso aqui esperam poesia, ninguém espera nada. Ninguém acha que um texto pode mudar sua vida, ou melhor, ninguém se deixa mudar por um texto, embora é óbvio que vão dizer que sim, que mudam. Talvez haja alguém sim, tenho essa esperança. Como se cada sessão de cinema servisse apenas pra uma pessoa. É meio solitário tudo isso, são 2:13 da manhã, escovei os dentes e interrompi Tchekov no meio.
O conto é sobre um seminarista que provavelmente se está enamorando, ainda não sei o resto. Tchekov talvez saiba. É tão difícil tentar dizer quando não se tem nada, porém acho que já disse alguma coisa, é que se fez a luz, por algum motivo creio que se fez. Acho que até pude ve-la. Será?

19 junho 2010

os velhos


- Esses velhos não são apenas pessoas.
-São o quê, então?

- São guardiões de um tempo. É todo esse mundo que está sendo morto.
- Desculpe, mas isso, para mim, é filosofia. Eu sou um simples polícia.
- O verdadeiro crime que está a ser cometido aqui é que estão a matar o antigamente...
- Continuo sem entender.

- Estão a matar as últimas raízes que poderão impedir que fiquemos como o senhor...
- Como eu?

- Sim, snehor inspector. Gente sem história, gente que existe por imitação.

A varanda do Frangipani - Mia couto

Era disso que eu falava ontem e não sabia como dizer. Quando lamentava a morte do Saramago, um antigo-novo, lamentava a morte de alguém que era um contador de história. Alguem que sabia olhar o passado e o presente e conta-lo, não apenas cita-lo, porque quem conta está presente, quem cita se faz ausência. Abandonando o tema de ontem e continuando a falar do assunto, acabo por lamentar que cada vez menos exista quem queira contar histórias. O que mais vejo são pessoas que vestem máscaras de escritores e começam a falar como se assim já o fossem, sem nenhuma centelha do que é ter uma vida.
As histórias para os velhos tem dois movimentos: o primeiro é de vida, contam porque muito já viram, viveram e pensaram da vida. Muito se cansam dela e alguns acham beleza, outros esperam a morte, mas todos sabem do quanto é interessante viver apesar de todo esforço que é conviver anos e anos a fio com o tempo. O segundo é de morte, contam suas histórias por medo de serem esquecidos, de que todo aquele esforço tenha sido em vão, contam e inventam, transformam sua vida em ilusões de vida, em pequenas noveletas para serem contadas. É por isso que há nos velhos uma fascinação quase mítica, os ouvimos como ouvimos um pajé, um padre, talvez nos aproximemos de deus, talvez, bem talvez.
Dizem que a distância aumenta a inverossimilhança dos fatos, então os velhos são os verdadeiros narradores de nós. Enquanto que os jovens vivem e os adultos se imitam a si mesmos e a imagem que têm de si, os velhos nos contam, nos guardam e com distância sabem nos ver.
É dessa sabedoria que sinto falta. E está de novo Saramago em minha vida.

ps: Mia Couto é um escritor moçambicano, todos deviam ler, principalmente "Terra Sonâmbula". Talvez em breve eu poste uma análise que fiz do livro, mas só talvez.

18 junho 2010

último dia de José

Despertou mais cedo que o normal e tentou com algum esforço levantar a cabeça para ver o tempo que fazia em Lanzarotte. Sorriu por dentro por ainda se preocupar com essas bobagens como o tempo ou o estado das coisas, enfim, das coisas mais fugidias. O tempo, o clima, pensou, serve mesmo para as plantas, as estações do ano, as marés e os animais, para os homens só lhes dão um empecilho aqui e outro ali. Nada de importante deixaria de ser feito porque chove. Estava debilitado e queria ir ao banheiro, no entanto Pilar não estava no quarto, por isso fechou os olhos por mais algum tempo para que quando ela chegasse não se chateasse, não gostaria que ela pensasse que o havia deixado esperar tempo demasiado.

Cochilou e num sono breve viu um elefante a atravessar o deserto. Havia lido em algum canto e reescrito aquela história e até agora não se dava conta da dificuldade que havia de ter sido esse trajeto. Escreve-la não fora e jamais chegaria perto do esforço que aquele gigante deve ter feito pelas trilhas turvas desse gigante maior, sem trilhas, que era um deserto. Viu o Sr. José na Conservatória Geral do Registro Civil, na última mesa a bater uma máquina, ou computador, sua memória de si e de seus outros já começavam a rarear. Acordou pouco depois com Pilar que lhe trazia o café. Sentou-se com algum esforço, o travesseiro colocado nas finas costas, já emagrecidas, e comeu. Disse a Pilar em bom espanhol, Essas bolachas estão deliciosas, Foi seu Marco da padaria que as trouxe, Agora é ele quem as traz, já não as busca mais, Ele achou que assim seria melhor, para que eu pudesse cuidar melhor de si, Estou bem aqui, estou fraco e adoecido, mas sei que estou sempre bem e há também as enfermeiras que não se cansam nunca de me cansar, José, entenda, disse ela tentando ser compreensiva, você merece e requer cuidados e não seria eu, e parou vacilante sem saber mais o que dizer. Então ele a interrompeu, Dediquei-te um livro uma vez com essas palavras “A Pilar, como se dissesse água” e as repito agora. Ficaram em silêncio por instantes e como se fossem água num rio se deixaram passar. Pilar levantou para levar o café e José se sentiu extremamente cansado, um cansaço feliz, era um sentimento que ele tentava descrever em sua cabeça, porém era incapaz, doía e era bom, enfraquecia a cabeça, mas enrijecia os braços e pernas, foi quando viu a si aos 62 anos sentado na cadeira da frente com uma camisa vermelha, calça jeans um pouco velha e um blazer do tipo que os jornalistas usam. Não se conteve, O que fazes aí, José, Estou aqui porque comecei a escrever agora, E eu, paro de escrever agora, Sempre vais escrever José, estás a escrever nesse instante, Eu sim, mas não minha mão, como vão me ler assim, Sempre preocupado em dizer coisas as pessoas, elas sabem se virar sozinhas, Não é o que parece, Talvez sim, mas bem ou mal elas vão aprender a viver sem ti, Espero que sim, não gostava de ser tão importante, Isso já o é, Isso já o sei. E lamentou com profunda tristeza. Quando num outro canto Ricardo Reis apareceu ao lado de Fernando Pessoa, ambos muito parecidos, com roupas parecidas, só Reis que parecia um tanto mais jovem. E tu Reis, vais fazer o que com tua Lídia, O de sempre José, lê-la, E tu Pessoa, também aqui estás, Não podia deixar de vir, ainda mais que Reis fez tanta questão principalmente depois do tanto que ele me disse de si. Obrigado, amigos, não sabia que tinha tantos assim.

Não pode dizer mais, se emocionava. Aos poucos apareceram mais pessoas: Camões, Eça, Garret, Quental. Todos olhavam José com tamanha singeleza que um profundo e segundo silêncio se fez, foi quando Pilar entrou no quarto e se espantou com o tamanho rebuliço de pessoas no quarto. O que se passa, José, perguntou, São meus amigos da vida, vieram atrás de mim, Estás a ir, Não, ficarei por aqui mesmo, mas de outra maneira. De repente, o José mais moço se sentou ao seu lado e perguntou, E agora José, como é, É tal qual sempre imaginei, dói e é bom, bate um cansaço e descansa, fere, arranha, mas acalma, a morte é bastante dialética. E sorriu. O mais moço segurou sua mão, José se levantou, vestiu uma roupa apropriada e junto com os outros saiu porta afora. Saíram rindo e conversando, e ainda da cama Pilar pode ouvir José dizer, cala-te Camões, és um chato.

Saramago - 18 de Junho

"Então vamos, disse, Para onde é que vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se." O ano da morte de Ricardo Reis - José Saramago


Não sou uma pessoa que lida bem com as coisas. Não tenho grandes lembranças dos meus avós, nada que me marcasse a ponto de ter aquilo como parte integrante de mim. Lembro no máximo de um cheiro, de uma comida, de umas palavras, mas nada que me faça ser o que sou hoje. Entretanto, esse velhinho, audaz e frágil, irônico e engraçado, forte e sútil, também sou eu. Foi ele que me ensinou a escrever, me ensinou a pensar e me levou às melhores viagens que tive na vida. Lembro que o Sr. José acompanhou minha vida por muitos meses, numa batalha ferrenha entre texto e eu, que no fim perdi e vi o Sr. José, um outro já, emergir na escuridão. Lembro também de Pedro Orce, com o cão sempre ao lado, morrendo ao mesmo tempo que aquela imensa jangada ibérica parava no meio do oceano e lembro também de ali ter nascido uma árvore. Lembro das viagens de Ricardo Reis por Lisboa e das imensas conversas dele com Fernando Pessoa, ou seus passeios por entre os eventos urbanos. Lembro também do pobre Caim, do cão das lágrimas, da mulher de óculos, de Joana Carda, de jesus e até do senhor deus e de todas as pessoas que passaram na obra dele, pois Saramago também era todos eles.
Enfim, Saramago é tão próximo de mim que é um parente, meu avô, minha maior referência, a única pessoa que quando dizia algo eu parava pra escutar, com a admiração de um aluno e o respeito de uma criança. Ele fazia um obra contemporânea parecer clássica e isso me fazia tira-lo do tempo, ve-lo quase como alguém que de outro mundo vem para escrever sobre esse, quase profético.
E agora que ele sumiu, pois um ateu nunca se rende e não seria agora que ele se renderia, vai existir comigo, pra onde eu for e sempre que eu escrever vou tentar fazer jus à ele. Agora que ele sumiu é obrigação minha lembrar também dele e dizer a todos que um homem escreveu, que seu avô era criador de porcos e analfabeto e que ele um dia com as palavras tentou mudar o mundo. E mudou o meu.

14 junho 2010

o tempossentimento

Não sei porque tanto se fala sobre o tempo. Pode ser porque no fundo intuímos que ele é o único assunto verdadeiro, relevante de nossa vida, apesar de quase sempre passar despercebido. Não me vejo envelhecer, por exemplo, a não ser quando minha barba grande e expessa me torna mais velho, carrega meu olhar e meu rosto de traços que não se identificam com aquele eu que sinto por dentro.
Digo tudo isso porque percebo o que um sentimento faz. Gostar de alguém é como abrir uma fenda no tempo, parece que ele não mais existe de uma maneira objetiva, mas apenas da maneira como o encaramos, seja na saudade - eterno -, seja na presença - veloz. E é essa subjetividade que confunde tudo, nunca sei quando é cedo ou tarde, nunca sei quando é muito ou pouco, vou agindo assim de improviso assim como meu sentimento manda, mas a impressão é de que o tempo é meio que sempre um vilão eterno. Acontece que vem um dia, como o dia dos namorados e põe tudo em ordem, faz o tempo ser amigo um dia e me faz feliz como não era faz tempo. Por isso eu quero agradecer a cronos, que tem sido um bom companheiro ultimamente.

07 junho 2010

gênesis

Primeiro havia a escuridão, ou melhor, havia uma certa luz que servia para mostrar essa escuridão cercada por uma fumaça densa e espessa que preenchia tudo, pertencendo-o não só por fora, mas também por dentro.
Depois veio a fuga, um desvio, onde a cabeça precisava descansar e o corpo conhecer coisas novas, se estragar um pouco, ccomo se ao se maltratar se chegasse a alguma liberdade.
Até que os olhos cruzam com os olhos e a fumaça num instante se dissipa. É a nova vida que aparece: a primavera; chega o messias e anuncia a nova aurora que nos abarca quase como num filme bom ou numa lembrança de infância.
No fim, chega o resto, toda a felicidade que a primeira luz fez aparecer. Não há mais fumaça ou desvios, não há mais. É como se a bíblia se tivesse esquecido do apocalipse e ninguém mais fosse culpado de nada, é como se tudo que houvesse de bom na vida se explicasse por uma palavra, que simples sai da boca da menina: sim.

04 junho 2010

da poesia

Não entendo as poesias, vazias.
Se dizem de sonhos, mas me parecem de mim
Estico e esgarço-as, nada sobra
Eu sobro.

A poesia que imagino e que não vivo
Seria poesia de outro, de fora
De quem não sabe que diz, e rima
Incessantemente palavra à palavra

Aí eu olho o computador e vejo as linhas
Que lembram poesia pela forma
Mas não parecem nada e não são.
Sinto vontade de falar palavrão...

Finalmente eu lembro o que me fez vir aqui
Queria escrever sobre esse outro
Esse sentimento imenso e feliz
Que faz que a poesia seja eu
Enquanto quero que ela seja de outro

E é nesse esforço que é sentir –
Quando toda poesia parece estúpida
E todas as palavras são ditas
E imensamente repetidas –
Que percebo que é dessa matéria que a vida é feita

Dessa mesmo
Disso tudo
Desse movimento
Que não sei o que é...