26 abril 2010

deve ser um curta - um exercício

(Está deitado no sofá da sala. Imagens se alternam mostrando o ambiente: uma mesa de centro, alguns outros sofás, jornais, flores num jarro, uma pilha de cds, dvds e livros, fotos e por fim o sofá e ele. A câmera começa a se aproximar dele, que vira de lado, ficando sem encarar a câmera. Fala para alguém.)

Oi. To aqui de novo, meu estômago ainda dói, minha carteira de motorista venceu e acho que nada vai mudar, não vou ter aquele medo de novo, você não vai querer mais uma vez. Às vezes eu penso em você, às vezes não. O cachorro mordeu a minha prima, ela chorou mas já está bem. Como se fala das coisas hoje em dia? O flamengo venceu, sabia? Diz alguma coisa mesmo sem dizer nada. Existe alguém que não gosta de ninguém ou sempre tem alguém gostando de alguém que não gosta dele e só umas poucas que gostam e são gostadas? Se alguém perguntar se você gosta de alguém você vai falar talvez, falar que não sabe? A gente força. É que às vezes parece que...às vezes as coisas são diferentes e ficam estranhas. É que tudo vai mudar.

(Vira-se, fica de barriga pra cima, uma longa pausa.)
Oi. To aqui de novo, meu estômago ainda dói, minha carteira de motorista venceu e acho que nada vai mudar, não vou ter aquele medo de novo...

(uma grande mistura de imagens de carros na rua, ônibus passando, pessoas conversando na mesa de bar, o barulho de um liquidificador, o choro de uma criança, um casal que passa de mãos dadas ao som de uma música eletrônica bem intensa, tudo num rebuliço que não nos permite entender as sequências. De repente, tudo fica em silêncio por um tempo, as imagens continuam, ouve-se um barulho de coração bater bem ao fundo. As imagens vão ficando mais lentas, uma escada, uma porta, um bicho de estimação e novamente o sofá com o rapaz. Ele levanta, fica um tempo sentado, ajeita o cabelo, pega um casaco que estava ali do lado, um livro, um óculos e sai.)

25 abril 2010

a dança

Foram em uns passos de dança que a gente transpirou, se inspirou e se encantou e enquanto a vida tarde e a noite não acaba a gente vai ser mais um bocado feliz.

16 abril 2010

coleção

eu coleciono livros; nomes de escritores ao lado de nomes de romances quem vendem ilusões de romances; coleciono textos de autores da moda pra tentar ficar mais inteligente ou interessante; coleciono all stars, porque desde o primeiro que tive e lhe vi também usando nunca mais quis e conseguir parar; coleciono remédios de nariz, neosoros, tenho um montante aqui vazio e mais um tanto com reserva; coleciono camisas do flamengo que me aguentam nas horas de mais tristeza ou de mais solidão, me fazendo ser parte de alguma coisa; coleciono piadas e dvds, bebedeiras e ressacas; coleciono muitas coisas, mas não tenho fotos e não tenho lembranças, apesar de que tenho a sensação de que coleciono vocês.

15 abril 2010

nomenclatura

Se nesse dia, numa altura errei teu nome
não faça caso, não me destrua
é que diante do teu traço
no viés do teu abraço
diante de tal escultura
falhou-me o passo,
abalou-se a estrutura.
No fundo, no fundo...
ô...
...ô
ô...
querida...
foi erro de nomenclatura.

06 abril 2010

ela sorria (com a palavra)

chovia no rio
cata gota refletia um vazio
a tarde rasgada de fio a pavio
entremeava a fortuita lacuna
entre a primavera do sol
e a decadência do som

a voz não é mais dita
o que se ouve são repetições
ecos antigos, oblíquos, densos
extensos como megafones
que atravessam poucas pontes
que rumam para o oposto

assim me soam as histórias
as paixões, as comoções
os pedidos, as reclamações
tudo como palavra velha
desbotada pela insistência
de apenas uma pessoa que as recebe
mas não mais me escuta
porque a palavra que agora é vácuo
ela antes ouvia como poesia

(e sorria.)

05 abril 2010

uma (quase) história de amor

entrei na rodoviária e o casal estava lá. Ela sentada no colo dele. Ela pequena, magra, cabelo curto e olhos muito escuros, ele boa praça, cara de moço de família, não malhava e cultivava um pouco a barba. Algumas malas perto deles, umas quatro, contando com uma bolsa térmica. Quem olhasse não saberia dizer quem viajaria, se ele ou ela, mas de ninguém escapava de que ali havia uma paixão. Ela sorria com o que ele dizia e ele tímido se arrependia de tudo ter dito. Ele fazia um silêncio e ela silênciava quase triste por ter achado que não agradava. Meu ônibus chega e entro: é também o ônibus dela. Eles dão um beijo e se despedem, ele olha por ela da grade, uma espécie de limite, separação imaginária. Ela guarda as malas no bagageiro sempre aos olhos dele e sempre retribuindo com um olhar também. Eu, do ônibus quase não via isso tudo, sentia que perdia alguma coisa. Ela se sente perto de mim, dois bancos a frente. Ele, que ainda a olha, pega o celular e liga, eles conversam por instantes, sorridentes cá e lá. O ônibus parte, um último adeus e por alguns segundos um silêncio se faz, um corte. Duas curvas depois ela senta na cadeira ao lado da minha e aperta minha mão me entrelaçando os dedos. Diz: "que bom.", eu pergunto: "o que?", ela: "que seja assim, agora." Abaixei a cabeça silenciando, ela baixou a cabeça triste por ter achado que não agradava. Pouco depois me deu um beijo no canto da boca, eu sorri e meu sorriso sorriu nela uma pequena covinha. Viemos em silêncio e não nos largamos até aqui.

entre

Não tenho vontade, não tenho. Não me apetece falar de amor, nem da aurora, me aborrece. A gente se esquece mais rápido do que consegue gostar. Que cesse. Que essa pulsão de agora consiga transparecer num texto dialético, que eu consiga passar esse paradoxo. Talvez haja um amor que se sente e é dele que se quererá dizer, mas dele será a última coisa que se irá dizer, porque nele há uma ilegalidade, um desperdício, uma sobra, um excedente desnecessário.
Vou tentar de novo: As coisas são como são e têm a medida exata do seu tamanho, então é preciso se pensar a partir disso, mas uma coisa que permanece é aquilo que a gente consegue fixar num significado. Tudo que entra no passado automaticamente se torna incerta hipótese daquilo que não é, ganha um tom de dúvida, inexatidão, como uma folha de papel que se dobra errado e não se pode consertar. Mesmo que não se faça nada com a folha, mesmo que vá se fazer tudo, há nela algo de incerto. Existem vozes que dizem e redizem, existem palavras que dizem por nós sem nós. E não existe nós, existe um eu e um você em palavras. Só. E é bom.
juro que acaba aqui, de verdade.

01 abril 2010

prisão

Tá aqui preso. A estratégia suspensa. O cabelo mal penteado e a barba mal feita. Tá tudo guardado, hibernando pra depois, sentimnento de futuro, sofrimento do passado, indecisão do presente, como se a divisão do tempo fosse espacial, como se cada indicativo de tempo demarcasse um lugar, uma situação e essas situações são exatamente o que nos fazem ter algum sentimento. Ou seja, é tudo confuso. Então a gente projeta essas coisas pro futuro, pra algum lugar no futuro, nada no tempo, o tempo se esvairá, pra se criar outra situação e outro tudo, desde o começo, mas enquanto isso vai o cabelo mal penteado e a barba mal feita.