31 maio 2010

purgatório

Apontei o lápis, mas não escrevi nada. Aquele buraco me incomodou. Meus olhos querem se fechar, pedem que eu durma um pouco, tire um chocilo, coisa de meia hora digo pra mim, mas resisto. A cabeça começa a trabalhar novamente, primeiro me diz que não são os olhos que fecham, mas as pálpebras, depois me faz perceber que dá até pra sentir, ao se fechar bem, o toque dos cílios superiores com os inferiores. Essa é a cabeça que não para nunca, como se meu presente fosse asburdamente distentido, como se meu dia fosse sempre durar uns três, como se, ao estar doente, eu vivesse algumas vidas, com alguns amores e muitas decepções. É como se eu fosse católico e não importa o que quer que acontecesse, acabaríamos no juízo final, tendo que prestar contas, e quiçá um purgatório me apareceria, ou ainda, poderíamos chegar todos juntos no apocalipse. Seria um presente público, não só esse interno, meu.
Acontece é que, muito feliz, não consigo deixar de pensar que haverá uma lei da compensação. Acontece que quem muito quer nada tem, quem é vivo sempre aparece, quem avisa amigo é, quem tem boca vai a roma, ou seja, quem faz tudo, quem está em todo lugar, a vida é toda de quem, e quem com ferro fere com ferro será ferido. No entanto, no final sempre fica tudo pra depois, pego meu violão, sento na cama, deixo os olhos (ou as pálpebras?) se fecharem e canto bem devagar a canção: quem tem medo do lobo mau...lobo mau?”

24 maio 2010

a urca

Estive no lugar mais lindo essa semana. A Urca me renovou, fez renascer em mim uma coisa boa, guardada, tão pouco cuidada. É tão bom quando a natureza toma a gente e não a gente toma ela, é tão bom poder se entregar a essa força maior que eu. No fundo, odeio quando chamam de deus, porque sendo natureza é tão mais lindo, mais poético e tão mais divino do que se ele existir mesmo. Como diria o velho Quintana: "tão bom morrer de amor...e continuar vivendo". É disso que falo, de uma poesia que esse lugar me fez desfrutar. Tentei descrever a prainha, com as casas, com a mureta, as pedras e a vista, desisti. Agora falo só das sensações. No fundo a urca pra mim é uma imensa metáfora.

20 maio 2010

decifrar

Ela anda, ela dança, ela fala do presente, do passado, ela conta segredos, ela dissimula, diz coisas que me fazem pensar em um, mas devem querer dizer outro. Ela faz planos e eu penso que gostaria de decifra-la. Imaginem que ela está sentada num banco de praça com as mãos pousadas no joelho, o cabelo longo solto, o olhar expressivo inerte, e o sorriso fechado, trincado. Ela é de uma simplicidade que não consigo acompanhar, é factual, é quase jornalística, pragmática, prática, objetiva, parece quase mediana, mas pelo contrário, sou eu que de uma profundidade cambiante, de uma dialética opressora e fragmentada não consigo pensar em nada que faça sentido. Quando eu penso em decifra-la, penso numa batalha entre esparta e os nazistas, penso em mil metáforas uma depois da outra numa sequência infinita. É como se ela, ao ser quem é, revelasse a mim quem eu sou na maior profundade, ela revela a essência de mim, algo doído que só se dá nessa dialética. E ela continua sendo linda: anda dança, fala do presente, do passado, conta segredos, dissimula dizendo uma coisa que me faz pensar em um mas é outro. Ela planos e eu penso que gostaria de decifra-la. É uma fraqueza, mas é a maior delas...

12 maio 2010

um livro

uma vez esqueci um livro com uma amiga,
ela nunca devolveu e eu comprei outro igual.
a ausência daquele livro vive em mim
será que ela leu o livro?
será que ela leu o livro igual a mim?
ou será que ela leu um outro?
será que aquele era diferente do meu?

nunca vou saber.

é engraçado

É engraçado. Meu amigo Saulo que sempre diz que adora começar um texto com "é engraçado", mas é tão bom. Esse "é engraçado" é como se a gente tivesse uma profundidade de coisas ilimitadas a dizer, mas no fundo são apenas bobagens que a gente vai pedir perdão depois, ou então vai se arrepender, ou então algo que a gente quer escrever e logo depois esquecer.
Acontece é que está passando um futebol aqui na televisão, eu estou sozinho, vi dois filmes hoje, fiz um trabalho e estou bastante cansado de pensar e mesmo assim ainda não fiz nada. Eu gosto de tudo que eu fiz e estou feliz, mas esse "não fazer nada"- porque não há reconhecimento de ninguém - me incomoda, daí eu fico com raiva e digo que odeio todos numa espécie de misantropia. Às vezes as coisas são assim. E já estou profundamente arrependido de ter escrito isso, gostaria que fosse um texto leve, mas saiu isso e está muito chato. Parei, mas que é engraçado, é!

Mil e uma noites

Toda narrativa que tem a oralidade como marca de criação possui suas histórias baseadas num viés duplo: são ao mesmo tempo anônimas e coletivas, sem autor e autoria, representam um povo, um espaço ou um tempo. É interessante reparar, então, que essas narrativas são pautadas basicamente em uma base: a história do próprio passado de um determinado povo mais o imaginário que funciona como espécie de memória - marca de passado – e variação (marca de presente e futuro). É como se esse imaginário moldasse a narrativa a partir dele próprio e assim, elas vão se tornando histórias coletivas, que representam aquele povo através de seu próprio tempo.

Borges começa sua fala ressaltando o fascínio do Ocidente pelo Oriente que representa o estranho, o escuro, o outro, o inexplicável. Destaca que o Oriente não tem uma noção de história como temos, para eles a história é fluída, cíclica, não existe uma “sucessão de fatos”, por isso que os egípcios eram vistos pelos gregos como povos “de outro tempo”, o que novamente destaca uma espécie de temporalidade, um fato determinante para o interesse na história das “Mil e Uma Noites”, uma vez que esse “mil e uma” não representa exatamente esse número, mas sim, um infinito número, um incontável número de contos que cabem dentro daquela mesma narração de Sherazade. Aliás, essa forma precisa e exata de se manter sempre uma obra aberta e que permite não só a adaptação, mudança e criação de novos contos, como também essa participação plural de vozes que permeiam e adentram a obra, num profundo exercício de lapidação. É nessa obra “aberta” de “mil e uma noites” que torna possível imaginar que seja uma obra infinita, o que virtualmente ela é, pois cabem mais mil e uma noites dentro dessas, como diz Borges: “os arábes dizem que ninguém pode ler as mil e uma noites até o fim”, mas não porque não conseguem, porque ela dá a sensação de infinitude.

Borges (pg. 78/79) explica que esses contos perpassaram por vários povos, o que de certa forma torna mais complexo esse movimento de oralidade, trazendo mais elementos que são conflitantes e tornando essa “lapidação” ainda mais rica em pluralidades, temas e composições. Em determinado momento diz: “Esses contos devem ter sido fábulas. Suspeito, aliás, que o encanto das fábulas não esteja na moral”. É importante esse destaque para as fábulas pois elas são pequenas histórias, também em algum nível, abertas, que permitem emendas, cortes, que trazem em si também elementos mágicos ou fantásticos como a possibilidade de animais falarem entre si ou com humanos, de animais serem antropomorfizados, entre outras fatos. E o que se vê nas “mil e uma noites” é isso: uma história que permite entradas do mundo fantástico, seja com lâmpadas mágicas, anéis, ou com poderes de gênios ou de deuses. E o que seria essa magia? Um tipo de causalidade diferente, uma relação causal até então estranha, típica dessa concepção do mundo do oriente. A diferença entre a fábula e as “Mil e uma Noites”é que a fábula ganhou um tom moralizante, principalmente ao serem traduzidas pela idade média nos mosteiros (onde até acrescentaram uma frase contando a moral da história), enquanto que as “mil e uma noites”, reunidas no séc. XV e traduzidas pela europa na auge do neo-classicismo, mas que quase cita o romantismo, foram interessantes pela estranheza, pela diferença das obras da época, ela era livre e permitia ao imaginário viagens, ao contrário das fórmulas até então vigente de Boileau, baseadas na Arte Poética de Aristóteles da “grande arte”.
Nesse sentido, podemos destacar os povos como uma “escritora” dessa obra, ainda que não configure uma “escritura” da maneira que conhecemos hpje. Essa escrita de efeito curioso, em uma espécie de infinitude, onde cabem contos dentro de contos (o que acaba por se aproximar do gênero “novela”) nos traz uma espécie de vertigem, de sombra, de breu, onde as coisas não são reconhecíveis e portanto se permitem à metamorfoses. Assim, as histórias das “mil e uma noites” também são as histórias de Ulisses, no caso do Polifemo, ou seja, são traços de narrativas que permitem a entrada de outras. Quem sabe todas histórias sejam das mil e uma noites? Quem são nós não fazemos partes dessas noites intermináveis?

A oralidade permite, então, que o imaginável e o imaginário estejam presentes como marca de espaço, tempo, ação e temas. Tudo está dentro de sua estrutura, nada é permeado por regras, dogmas, estruturas fixas, pelo contrário, a oralidade permite que tudo que a mente conseguir conceber esteja envolvido em todos os processos dessa história. A mil e uma noites não são apenas histórias transmita oralmente e depois transcrita, ela faz parte da história do que somos enquanto pessoas, nossas crenças, nossos mitos e nossas profundezas inexploradas. É o registro do que foi nosso pensamento e da base de um pensamento atual que ainda nos permeia, por isso é tão contemporânea e tão presente, por isso que é fascinante, porque as “Mil e uma Noites” ainda não chegaram ao fim.

referência - Palestra de Jorge Luis Borges, "As mil e uma noites"

03 maio 2010

prolegômeno

Rio de Janeiro, 3 de maio de 2010.
Pode parecer uma carta ou um diário, mas não é. Se fosse chamar de algum nome esse texto seria "ode", não uma ode pra engrandecer, apenas uma pra destacar, dizer que fez parte de mim isso em algum momento.
A cidade do Rio está iluminada, os letreiros coloridos de propagandas estão refletidos no negro do poluído mar de botafogo. Eu passo de ônibus e contemplo isso, contemplo a vista para niterói, o pão de açúcar e um pedaço da lua. Olho a temperatura como se fosse fazer alguma diferença. Não faz. É uma cidade que sempre me encantou e ainda continua encantando, é o lugar onde mais estou exposto a mim mesmo, a uma solidão estética que não consigo descrever. As luzes dos prédios, excesso de luzes - crença dos engenheiros e arquitetos da década de 50 em 60 no concreto e na luz elétrica - não permitem nem uma pequena fuga desse fogo urbano. Salto do ônibus, cruzo por grupo de amigos vestidos pruma partida de futebol, entro num supermercado, a voz que a muito não sai da minha boca quase se embarga na hora de um boa noite ou obrigado.
Começo a pensar nesse texto, ele me aparece já pronto, colorido e pede um nome, que em minha cabeça aparece como "introdução", "prolegômeno", "prefácio" ou "prólogo". Palavras que bem ou mal significam "aquilo que é dito antes". Não entendo muito bem, mas sento aqui e escrevo. O que é pra ser escrito depois?