29 março 2012

o poste e a ponte

Estavam sentados frente a frente, ou lado a lado – sua memória nunca foi espacial – e tentavam reproduzir coisas que gostariam de dizer. Enquanto um falava o outro entediadamente escutava, mas quando o primeiro resolvia fazer silêncio o segundo punha-se também a falar atabalhoadamente para evitar o silêncio, o que entendiava o primeiro.
Queriam falar sobre coisas importantes, mas nunca souberam exatamente o que era importante na vida, além do mais, será que aquele era o momento propício pra dizer alguma coisa importante? Talvez não, deixa pra lá. Aí outras coisas iam acontecendo e eles iam levando-as – ou tudo – assim como as coisas eram pra ser levadas, ou seja, sei lá o que vamos dizer-fazer-pensar.
E a palavra coisa ia se repetindo a cada vez que algo não podia ser dito ou não havia o que se dizer. Ia-se materializando, passo a passo, o nada frente ao tudo e o apocalipse frente ao gênesis, só que nada mudava e tudo parecia exatamente igual e diferente do seu contrário. Assim como Othelo às avessas, sem Iago e a oligofrenia do negão.
Até que viram um poste, alto alto alto e transformaram em uma ponte longa longa longa e deitaram frente a frente, ou lado a lado – suas memórias nunca foram espaciais – e ali permaneceram por quase meia hora – sempre foram ruins em matemática – levantaram e atravessaram a ponte sem pressa.
Do outro lado se viram sentados frente a frente, ou lado a lado, tentando reproduzir coisas que gostariam de dizer. Enquanto um falava o outro entediadamente escutava.

27 março 2012

preto

Olhei e não vi nada.
Pouco tempo depois nada mais podia ser visto.
então fechei os olhos
e vi preto.

26 março 2012

versões

O amor tem versões
e raramente dura dois verões.

Vez em quando
de caneta vermelha
é preciso pegar o amor
e fazer revisões.

(porque a vida é um roteiro do von trier com trilha sonora do Catra.)

25 março 2012

domingo no rio

O Rio aos domingos parece São Paulo. O aterro fechado pro trânsito com famílias andando de bicicleta e tricíclo me lembra os patéticos passeios que os paulistanos fazem nos viadutos. A cidade fica semi-vazia, triste. O que mais me irrita no Rio aos domingos é o excesso de casais com um aspecto absolutamente higienizado tomando sorvete do mc donalds de mãos dadas sem transarem os dedos. Aquelas caras de bunda mole com bermuda caqui e camisa polo e um vestido de domingo com uma sandalia rasteira.
Parece que todo burocrata chato usa o domingo pra tentar sorrir um bocadinho, mas não cola, não rola, fica falso, urbano demais. Algumas pessoas não deveriam sair nunca de seus escritórios, deviam se misturar aos seus processos e estantes e morar por ali. É que até caretisse tem limite e minha cara de sono, minha olheira, minha camisa do flamengo e minha ressaca são potencializados por esses sujeitos. Ainda bem que a semana sempre recomeça e eles se escondem e eu, continuo na mesma, na rua.

18 março 2012

mpb

não vanderlize meu caetano
que meu joãogilbertismo
é altamente lobonista
e não resiste aos leninismos
inefáveis dos buarques.

17 março 2012

pornografia

tem tantas coisas que gostaria
e me esforço pra esquecer
que às vezes percebo
que nada tenho pra lembrar.

o que sobra é só o agora de dia
e um bocado de pornografia.

13 março 2012

feio

vi a menina pelo reflexo do vidro do ônibus. Tinha dois olhos claros que quando se mexia viravam quatro, dois narizes e o cabelo preso. Eu suava do seu lado, de calor, e a olhava. Vez em quando ela me olhava e com o tempo passou a me olhar mais.
Vagou uma cadeira no fundo do ônibus e eu, com vergonha de lhe oferecer, sentei. Ela se decepcionou.
Ainda não havia conseguido ver sua cara quando o ônibus parou. Ela virou e de trás vi seu rabo de cavalo. Desceu e foi na direção contrária.
Entrei na sala e lá estava ela.
Vi: era feia.
Me olhou: me achou feio.