25 abril 2012

a caixinha

A vida é uma caixinha de surpresas, dizem.
e eu beijo na pele a tragédia disso: a vida é uma caixa, uma baixa, uma prisão.
as surpresas não surpreendem porque não saem da caixa, caixinha de vida baixa.
sobra-nos a repetição:
a vida
é uma
caixinha de
surpresas.
torcendo pra que o óbvio ainda surpreenda
e que o inesperado aconteça
sabendo que, antes que amanheça,
é preciso dormir,
é preciso acordar,
e saber dormir e acordar.

saber repartir entre a vida e o sonho
os nossos desejos tristonhos
e nossos desenhos medonhos e enfadonhos
que sonhamos antigamente quando ainda éramos crianças.

a lembrança do teu beijo
me inspira às minhas maiores paixões:
nada.
me inspira ao resto de mim
à sobra de mim
dejeto de mim
escombro de mim
auschwitz de mim

é,
a vida é uma caixinha de só presas.


tenho pressa.

24 abril 2012

marina2

um presente meu para marina monsanto

marina menina caminha na orla do mar
marina cantiga que leva pro sonho cantar
marina na beira não sabe o que tem do lado de lá
marina não sabe que fica pra sempre sonhar

de leve, marina caminha
e os passos que tinha
sabia que nunca teria jamais
marina ainda hoje não esquece
dos mares dos olhos
daquele rapaz

marina sem passos
se senta num banco vazio
de frente pro mar
e pensa na vida que tinha
e no tanto que ainda resta levar
depois se despede de tudo
entende que o mundo já não pode mais
marina mergulha no fundo
e chora quietinha inundada de paz

19 abril 2012

pulseiro

    O pulseiro no terapeuta:

Qual seu problema?
Sou um pulseiro.
O que?
Pulseiro.
É pulseira que se diz.
Então, nasci com defeito, sou um pulseiro.
Do sexo masculino?
Sim.
E é só pra homem usar?
Não. Sou um pulseiro unissex.
Então como você sabe que é um pulseiro e não uma pulseira?
Olha pra mim, está na cara. Sou azul, duro, inflexível: sou um pulseiro.
Também existem pulseiras assim...
É que sabe como é, eesse mundo moderno...
Sei.

    Silêncio.

E aí?
E aí o que?
O que você vai fazer com o fato de ser um pulseiro?
Não sei.
Tem medo?
De que?
Não sei, de alguma coisa!
De perder a identidade, talvez.
Você tem identidade?
Tenho.
Qual é?
O pulso.
Do sexo masculino?
Feminino também.

    Silêncio.

Decidiu?
Não.
O que?
Não decidi.
Não decidiu o que?
Não decidi nada.

    Silêncio.

Estou triste.
Mesmo?
Deprimido.
E aí?

Pulseiro saiu correndo do consultório, entrou em um banheiro público chorando e cortou os pulsos. Anda agora pela avenida mais cheia da cidade todo eiro.

16 abril 2012

o baile

Em um grandioso baile do Séc. XIX estava toda a sociedade burguesa reunida. A casa era da renomada família dos Pereira de Magalhães.
As moças novas de um lado com seus vestidos rodados;
Os moços jovens do outro com as braguilhas apontadas.
As senhoras brancas de maquiagem e os senhores em meio à fumaça dos charutos.
Tudo iluminado, muita luz, muito som.
Iluminação a querosene:
a morte.

Câmara de gás de um campo de concentração.

05 abril 2012

cito

o bom de escrever
é saber que nunca vou ser citado
porque quando escrevo
não cito,
sinto.

04 abril 2012

sobre eu não existir (em grande parte do dia)

Entro no meu prédio e dou boa noite ao porteiro. Entro no elevador e vejo a câmera me vendo. Saio e no corredor tem outra câmera. Viro a chave, a fechadura range e eu entro em casa. Acabou.
A verdade é que dentro de casa eu não existo. Enquanto estou dentro de casa, no meu conjugado minúsculo, eu não existo para o mundo e ninguém simplesmente é capaz de lembrar de mim. Os que gostam de mim, nem sequer pensam; quem me ama, sente o amor como uma vertigem; meus pais me acham uma espécie de cazuza, um filho que morreu e vai longe longe; até meu gato esquece meu cheiro e só vai relembrar quando, em alguns dias, faze-lo me sentir de novo.
É que essa espécie de solidão é um portal para a dissolução da existência. É que nesse meu cantinho é assim que as coisas devem ser, fechadas, trancadas e inacessíveis. Se por um momento, apenas um, eu souber que pessoas pensam em mim enquanto eu estou aqui, esse aqui que me é tão caro vai se tornar insuportável. Tenho a impressão que é assim sempre e que é preciso se abandonar com frequência. Dormir seja talvez o momento em que até você mesmo resolve parar de pensar em si e os outros só acordam quando você dorme e viaja no etéreo do sonho.
Aqui eu não existo, não. E quando saio às vezes até demoro a voltar a existir. É que pesa existir o tempo todo. Por isso que decidi entrar aqui e desvanecer. Tchau mundo, entrei e fui embora. Inclusive, enquanto você lê isso, eu estou não existindo. Talvez nem respire.

02 abril 2012

a festa

quero dizer só uma coisa:

quando vamos a uma festa
que não conhecemos quase ninguém
fica claro, fica evidente, fica perceptível
como a humanidade sofre.