28 outubro 2010

a profissão

“Isto significa que nos meses imediatos aos exames, e com ampla participação dos nervos, me alimentei de serragem, que por outro lado, me tinham remastigado já mil bocas.” Carta ao Pai - Franz Kafka

Era um sujeito que estava pronto a arranjar uma profissão, mas não sabia como fazê-lo. Seu pai engenheiro e a mãe professora pareciam exercer profissões que já haviam sido ruminadas por séculos de gerações. Aprendera, no decorrer da sua vida, que era uma pessoa única, especial, que deveria fazer aquilo que o coração manda porque era diferente de todos os outros e em todo mundo não existia nada, nem traço nem rastro de qualquer coisa que fosse similar a ele. É claro que não concordava, mesmo porque aprendera na aula de genética que a diferença entre um ser humano e um macaco era de menos de 1%. Ele até concordava com isso, via as similitudes e parecências, muito embora os macacos, do lado deles, parecerem não se importar com esse assunto que para os humanos era tão aflitivo.
Enfim, era um rapaz que aprendera a ser ele mesmo e quando foi escolher uma profissão só havia coisas que outros também faziam. Era um paradoxo. Advogado? Mas já há tantos deles no mundo, andando de terno, falando difícil e tratando mal as pessoas. Médico? Quantos já cuidaram dele, pediatra, ortopedista, urologista, todos de branco e com uma fala mansa apesar da letra bruta. Bancário? Assim como todos aqueles senhores que ficavam atrás daquele computador contando dinheiro e botando numa caixa que aparecia vazia no dia seguinte sem nem ao menos lhe explicarem para onde e para quem fora toda aquela grana. Ia listando uma a uma as profissões e já havia gente demais em todas elas e parecia não haver uma para ele.
Andava pelas ruas olhando e pensando no que poderia fazer. Poderia até inventar uma profissão nova, mas para isso deveria ser inventor, profissão antiga. Artistas se amontoavam também, além de que a maioria deles parecia insensível e egoísta. Sentava na praia e via tanta gente também sentada que chegou até a pensar que estavam passando pela mesma situação que ele, mas não, estavam apenas desempregados: era uma consequência de tanta gente fazer a mesma coisa, sobrava gente para coisa.
Não fazia sentido em sua cabeça essa lógica de profissão, se havia mais gente que profissão, tanto que muitas pessoas nem conseguiam trabalhar, porque então haveriam de escolher logo aquilo para fazer na vida? Escolhe-se uma profissão para trabalhar nela, não para ficar a toa com ela. Profissão não era uma posse, mas uma atividade.
Até que de pensamento em pensamento resolveu estudar que não era uma profissão. Passou a vida inteira estudando, sem nunca ao menos ter trabalhado. Vivia de dinheiro, migalhas, livros e atenção dos outros. Aos poucos foi lendo cada livro que existia, sempre fazendo anotações e escrevendo teorias sobre eles. Depois de cinquenta anos era a pessoa mais culta do seu país, e mesmo sem saber disso pois tinha vivido numa letargia social por tanto tempo, resolveu fazer um pronunciamento. O que sabia era útil para o mundo: bateu nos jornais, revistas, televisões e rádios e não foi recebido. Escrevera um discurso de quase oitocentas páginas que mal conseguia carregar sozinho e queria que todos soubessem o que havia aprendido em toda essa vida de dedicação e estudo. Eram palavras doces e duras, de uma sabedoria que só um homem que, por um lado estava entranhado do mundo e por outro havia se guardado dele poderia escrever. Entretanto ninguém ao menos chegou a recebê-lo. Ficava sempre nas portarias e via passar tanta gente bem arrumada e com o rosto tão tenso que misturava o que via com o que imaginara. Em sua cabeça se fundia o sonho antigo de ter uma profissão com a realidade de toda aquela gente. Seu pronunciamento, seu discurso e tudo que aprendera era tão precioso que parecia ser inútil. Depois de tanto trabalho, percebeu que talvez tudo havia sido em vão, pois em cada porta que batia, ouvia a resposta da secretária: “O senhor não poderá recebê-lo. Está trabalhando.”

26 outubro 2010

quando você chora

Quando você chora
Uma flor morre
Um rio seca
Um domingo acaba
Um jardim alaga
Um arroz azeda
Uma mãe se mata
Uma canção destoa
Uma fruta cai
Um bichinho mata
Um sol se põe
Um tênis rasga
Uma goteira pinga
Uma estrela apaga

Quando você chora, flor
Rio, domingo, jardim
Arroz, mãe, canção
Fruta, bichinho, sol
Tênis, goteira e estrela

Quando você chora
O mundo muda
Eu faço listas
E chove.

24 outubro 2010

23 outubro 2010

a invenção da fotografia




Jesus está na cruz. Está todo ensangüentado, uma parte por sangue novo que escorria e outra por sangue seco, coagulado das muitas horas que já estava lá. Ao contrário do que a Bíblia nos disse, ele não estava consciente. Depois de um tempo seus membros que doíam de uma forma nunca antes experimentada, que espetavam pelos pregos mal limpos cravados, começaram a formigar e ele, começou a ter a mente nebulosa.
Primeiro era só algo turvo, mas depois começou a ter visões, como se estivesse na experiência de alguma droga que muda sua percepção do espaço, do tempo, das pessoas e do mundo. Mais algum tempo depois, o formigamento chegou até as pernas, foi quando todo seu corpo parecia ter sido imerso numa banheira cheia de gelo. A partir desse momento, pouco ele sabia do que ali se passava, estava quase desmaiado, balbuciava palavras incongruentes e adentrara num estado de quase morte, meio desmaiado com uma respiração silenciosa.
Muitas pessoas assistiam. Maria e Madalena choravam, seus discípulos entristecidos oravam ao senhor na busca de alguma solução. Sentiam que seguiram seu rei por nada, que ele ali morreria e o mundo se mostraria outra vez injusto, matando os bons. Jesus havia dito que ele faria isso para salvar a todos na outra vida, mas alguns deles discordaram, disseram que vivo Jesus poderia salvar mais gente naquela vida também, porque quanto a outra tanto ele quanto Deus já estavam trabalhando. Judas não, este concordou com Jesus.
Acontece que dessa vez todos que assistiam, aproximadamente 2 mil pessoas, resolveram não ficar paradas olhando Jesus e os assaltantes morrerem para depois tira-los da cruz. Algum deles, talvez um verdadeiro Jesus, levantou e voz:
- Que tipo de gente somos nós que vemos nosso rei ser assassinado na cruz, julgado por nada e ficamos só olhando? Qual o direito que temos, depois de tudo que eles nos ensinou, de somente chorar? Qual o dever que temos por ele e por todos que ele pode salvar enquanto vivo? O livre arbítrio que ele mesmo nos deu deveria servir para que fizéssemos mudar os planos de Deus, porque ele não tem essa escolha: Deus segue os planos apenas dele mesmo sem poder mudar de idéia.
Assim convenceu duas ou três pessoas da sua idéia, mas que não se manifestaram de cara. Então ele correu até a cruz, postou-se de baixo dela e dizendo: “Viva, senhor, Viva!” começou a receber pingos de sangue em sua cara, enquanto tentava retirar algum dos pregos do pé de Jesus, depois achou que salvando os pés Jesus ficaria pendurado, então escalou a cruz abraçando ao Senhor para tentar livrar algum dos braços. O homem chorava, lá de cima bradou: “Como pode um homem fazer isso com outro?” Jesus balbuciou: “Madalena, você veio?”, mas nem o homem escutou, pois já ficava de pé por cima da cruz e fazia um discurso que pouca gente escutou, já que nesse momento o exército romano se aproximava para averiguar o rumor de levante popular. O homem já ia tirando algum dos pregos do braço direito de Jesus quando uma lança atingiu seu peito. Caiu morto em segundos, seu corpo ainda se prendeu junto ao de Jesus, mas foi retirado e jogado logo atrás dele, como exemplo para outro que tentasse a sorte.
Assim se deu. Um dos homens que assistia empolgado com o discurso daquele primeiro resolveu atacar um homem do exército, quando chegou próximo, o soldado tentou afasta-lo, mas ele correu e tocou o pé do Senhor, foi quando uma espada cortava sua cabeça que rolou morro abaixo. O corpo sem cabeça foi jogado junto ao do primeiro homem. Do povo, então, outro homem veio correndo e foi rapidamente abatido, e assim vieram em duplas, trios, até que um grupo de dez homens tentou salvar Jesus, que com a vista turva confundiu todo o movimento com uma alucinação. Atrás de Jesus havia uma pilha de corpos já. Não se podia mais aceitar aquilo e sucedeu que em meia hora uma pilha de corpos mutilados e ensangüentados acompanhava a crucificação de Jesus. Nem Maria nem Madalena se mexerem, permaneceram chorando e rezando, olhando para o céu e para Jesus, como vítimas de uma grande injustiça. Os discípulos haviam saído para almoçar e quando voltaram julgaram tarde demais para alguma coisa ser feita.
Passou o tempo e os guardas já se cansavam de matar homens que tentavam salvar o Senhor. Dois deles foram abatidos e seus corpos jogados junto da pilha. Jesus era acompanhado por mortos até sua canela e essa proporção só crescia. Assim que a rebelião acabou e quase mil e quinhentas pessoas havia sido morta pelo exército romano e jogada por detrás da cruz e depois que as outras quinhentas resolveu fugir, o exército se foi. Junto da cruz havia a mãe, a amiga de Jesus, dois soldados e cerca de cinco discípulos.
Jesus morreu sem silêncio. Julgaram ouvir alguma coisa, mas talvez fosse um lamento de algo dos corpos que talvez estivesse com vida. Era mais fácil que numa pilha de mil e quinhentos um houvesse sobrevivido do que imaginar que um homem por dias na cruz falasse.
As mulheres tiraram o Senhor da cruz e o limparam. Choraram por horas e o enterraram. Um dos soldados, que não era um muito feliz com essa profissão, lamentou não ter um aparelho que pudesse registrar a imagem de Jesus com a pilha de corpos no fundo. “Aposto que vão contar essa história diferente, aposto”, pensou. E foi assim que pela primeira vez alguém teve a idéia de inventar uma máquina fotográfica.

20 outubro 2010

os olhares da política


Estava pensando no olhar dos políticos em público. No que eles nos dizem, tentam dizer, no que eles passam ou precisam passar. É como se, mais do que ter um olhar próprio, eles tivessem que possuir um olhar neutro, mas um neutro engajado, um neutro cheio de energia, que seja capaz de sorrir, ficar sério, triste, indignado.
Penso que todo político precisa aprender isso muito rápido. Aquele olhar que ao encontrar seu rival deve sorrir, mas não muito, se sentir a vontade sem deixar de mostrar sua óbvia superioridade. Um olhar que é para o mundo, que solta flechas, que dá presentes e resolve vidas. Um olhar apaixonado pela sua terra e pela sua gente, um olhar que consiga representar o hino nacional ou um gol de nossa seleção. Um olhar que atinja crentes e ateus, que acabe com as drogas e os problemas de educação. Um olhar maior que seu próprio interior, um olhar que reflete um sintoma cujo remédio é ele próprio.
Depois pensei nos assessores desses políticos. Estão sempre atrás deles, prestando atenção em tudo, medindo as palavras do seu líder e prontos a dar um beliscão na bunda deles, ou intervir dizendo que nada mais se falará. É o olhar atento que o político não pode demonstrar que tem. Enquanto que o político tem esse olhar centrífugo, o assessor tem um olhar centrípeto. Por isso aquela cara carrancuda de quem não gosta de nada e de ninguém, de quem é capaz de matar pelo seu assessorado. Um olhar mortal. Seco, duro, sem nenhum tipo de sensibilidade. Um olhar que representa toda a jogada que é estar ali naquele momento, um olhar que representa a outra parte da política, representa a guerra, a força, o rancor e a desconfiança, mais que isso, é o olhar da disputa.
Esse olhar combinado com o dos políticos é que são a síntese da nossa política atual. Essa mistura de creme de leite com chocolate meio amargo, de banana com canela. Olhe para os dois ao mesmo tempo e complete a moeda. Não se vota pelas palavras, não se vota por um olhar. Se vota pela subjetividade como objetivo, pelo horizonte que essa síntese de olhares faz. Se vota pela capacidade de interpretar o futuro através dos olhares, tal como uma cartomante, que precisa ler seu cliente só de repara-lo. É preciso votar sabendo mais do que fatores práticos, votar em cima de uma balança que vai sempre estar em desequilíbrio.
A política é feita de tanta coisa, tantas palavras e vozes, mas nunca se esqueça das características dos olhares que vagam por ela...

08 outubro 2010

Terra Sonâmbula



(Terra Sonâmbula, 2007)
• Título em inglês: sleepwalking land
• Direção: Teresa Prata
• Roteiro: Mia Couto (romance), Teresa Prata (adaptação e roteiro)
• Gênero: Drama
• Origem: Moçambique/Portugal
• Duração: 95 minutos
• Tipo: Longa-metragem


sinopse:
Muidinga é um menino sonhador e seu maior desejo é encontrar a família, de quem se perdeu no meio da guerra civil em seu país, Moçambique. O menino lê num diário, achado ao lado de um cadáver, a história de uma mulher que está num navio à procura do filho. Muidinga se convence de que ele é o menino procurado. Parte atrás dela, contando com a ajuda de Tuahir, um velho cheio de sabedoria. A estrada por onde viajam é mágica: entende os seus desejos e os move de um lugar para o outro, sem deixar que morram antes de alcançar o sonhado mar.

link para download:

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