26 dezembro 2011

a verdade (um pouco mais cedo)

Eu sei a verdade. Não acredito que a verdade doa, porque o óbvio não pode doer. É preciso um pouco de dúvida, esperança e fracasso para que doa e a certeza e a verdade são claras demais para trazer sofrimento.
Saber a verdade não me dá nenhuma vantagem, apenas preguiça. Eu sei exatamente como funcionam as coisas e como a engrenagem natural deve ser mantida para que o plano dê certo.
Sei...e sabendo durmo um pouco mais cedo.

24 dezembro 2011

o pequeno natal

Quero falar do Natal. Um ímpeto não dos mais felizes me fez vir aqui e querer dizer sobre o Natal. O próximo passo foi pensar que não há porque falar de melancolia ou de tristeza, nem daquilo que está errado no Natal, porque, na verdade, com ele não há nada errado. O erro está em todo resto.
Então preferi falar de outros natais, os natais menores, pequenos, micronatais que existem dentro desse gigante Natal que quase nos oprime. Falo desse natalzinho muito pouco quase nada que nos perpassa muitas vezes e se não estivermos atentos, podemos perde-lo.
Por exemplo, o Natal de sentar no chão. Ganhar um presente e sentar no chão pra abrir é Natal pra mim. Aquela sensação de que se pode ficar torto e do olho se fixando num saco colorido. Dura segundos, mas segundos tão marcantes e tão fortes que se penso muito tempo neles, sou capaz até de talvez sorrir. Ou então o Natal dos embrulhos de presente espalhados: aqueles papéis, semi rasgados, coloridos, bregas, com desenhinhos que você nunca repara, jogados ali num canto da cama enquanto você dá uma volta pela sala pra pegar uma castanha.
O Natal de um bilhetinho, de um cartinha que você recebeu. Tente ler um papelzinho que você ganhou no passado e talvez nem tenha dado tanto valor. Leia agora e veja o valor que ele tem. Não chore, nunca há motivos pras lágrimas, mas leia. Esse sentimentinho pequeno é insubstituível e não há dor no mundo capaz vence-lo.
O Natal da melhora. O Natal de uma doença que se foi e você quase não lembra, a não ser por alguns sintomas que aparecem aqui e acolá e um certo medo de sofrer o sofrido e de viver o não vivido. O Natal potencializa isso, porque potencializa a vida. Mas isso não é grande, é pequeno e quase escapa do espírito natalino.
E poderia falar mais, falar do Natal dos cheiros, dos gostos, das árvores, das luzes, do vinho, o Natal de muitas coisas que existem e sempre nos escapam.
O problema do Natal é que é sempre um momento de saudade. Sempre temos saudades do que vivemos, do que estamos vivendo e é certo que temos saudades também do que há de vir.
Bom Natal pra quem sobreviveu...

22 dezembro 2011

natalino




o cara se chamava natalino
tinha nascido no dia do natal
e isso era uma saga na vida dele

"que dia especial pra nascer, natalino?"

e mandavam ele rezar
e mandavam ele agradecer
e mandavam ele se redimir

natalino, aos poucos,
passou a não comemorar seu aniversário
depois parou de comemorar o natal
depois parou de comemorar.

natalino, no natal,
abandonava o peru;

tinha espírito de porco.

15 dezembro 2011

acalme

sempre
que
a gente
escreve
cortado
e
com
poucas
palavras
parece
poesia.

pouco importa, prefiro falar na horizontal, muito, torto, bobo, burro, estúpido e tudo de ruim que posso atribuir a mim mesmo.

desde que acalme o coração.

13 dezembro 2011

o natal (antes do espírito)

Vamos lá, né? Natal tá aí. Mas o mais importante é pensar no que eu posso contribuir ao mundo à partir da idéia de Natal. Tentarei.
Bom, primeiro de tudo, acho que o Natal deve ser pensado por fora do famoso espírito natalino. Esse espírito que defino como "uma aura de alegria, felicidade e complacência que nos toma" me parece ser prejudicial em alguns aspectos, na medida em que ao mesmo tempo que ele nos enche o peito de amor pelo mundo, também traduz-se em uma espécie de parasilia. O espírito retira de nós uma capacidade reflexiva importante para ação. É nessa medida que eu concordo que o modelo de amor por Jesus deve ser seguido no Natal, mas o amor de Jesus é um amor engajado, violento, como ele mesmo diz, ele vem pela espada e não pela paz. É preciso pensar o amor não como um sentimento, mas como uma ação, como um movimento de transformação. É preciso, sei lá, beijar a ferida do leproso ou quebrar o templo ou enfrentar os poderes que nos rondam. Às vezes uma grande forma de manifestar o amor natalino está em enfrentar o patrão, enfrentar uma injustiça que ele nos faz. Talvez seja muito melhor que sair abraçando todo mundo.
Não sei, é uma idéia, é algo a se pensar. Só estou querendo trazer o Natal, uma data bonita, que comove e que une para mais um momento em que podemos mudar o mundo, ou pelo menos um cantinho dele. Espero não ter exagerado.

10 dezembro 2011

felicidade de fotografia

os meus olhos
encarnam no outro
a possibilidade do dois
do translúcido
e do espelho

e revelam
como quem não quer nada
um desejo de se viver
uma inegável e falsa
felicidade de fotografia

07 dezembro 2011

humildade

É fato. Humildade passou a ser qualidade e a palavra é repetida pra lá e pra cá na boca de um monte de gente que...enfim. Estava aqui eu pensando sobre o termo. O que é ser humilde? Qual a caraterística principal da humildade? A frase me veio na cabeça assim, de supetão: humilde é quem mostra as fragilidades.
(Não confundir fragilidade com fraqueza. Fragilidade é quão rápido se chega ao âmago e não o quanto ele aguenta. Melamed)
A posição do humilde, na boca do comum, é não arrotar mais do que pode e não arrotar nem ao mesmo aquilo que pode. É ter uma visão de si menor, pelo menos exteriormente, daquilo que se considera por dentro.
Pra mim não. Pra mim ser humilde é saber exatamente seus pontos fragéis, ou seja, aquelas partes suas que se alguém atingir vai te afetar brutalmente e mesmo assim não tentar mascara-las com grito, raiva, violência, sorriso, amizades, amores ou qualquer outra coisa. Ser humilde é estar exposto ao mundo e vê-lo como porta de acesso para conquistar suas coisas, por isso o humilde é sempre quase um coitado porque ao expor o que tem, geralmente alguém monta em cima e bláu, toma-lhe nas costas, amigão.
Por isso ser humilde é difícil demais, por isso eu me acho pouco humilde, porque pra viver inventei meus recursos...

goteja

essa flor que dá na água
amarela que só ela
colorida do luar

meio rota e maluca
que venceu a forta bruta
da maré e da mulher

quando o homem se balança
lá na rede da varanda
esperando o carnaval

esse carro então dispara
e te acerta feio bala
só descansa no natal

quem vai querer
que o que já é
não seja

quem vai saber
que a vida só
goteja

05 dezembro 2011

meus mundos

Hoje eu já fiz uma música, já escrevi uma cena, já corrigi uns textos. Já vivi em muitos mundos sem sair de casa. O importante não é a produção, é a producência, o ato de escrever em direção a...Detesto a poesia do poeta, só gosto da poesia daquele que, tentando falar alguma coisa, poetizou sem querer. Quem fala mal do cotidiano ou da rotina é porque vive em um mundo deveras pequeno. Eu enquanto ando de ônibus, penso em muitos tantos mundos que posso habitar e, pensando, habito.

01 dezembro 2011

pajotara

O mundo é um fio, um largo, gigante e fino fio que nos atravessa e seu coração é como um guarda-chuva que atravessa o fio num saltitar belo, leve e desconfiado de que o tempo talvez esteja parado enquanto acontece o atravessar.
Sempre que você ama, eu lembro que o amor existe e lembro que qualquer amor é o maior amor do mundo e imagino que um dia quero ser digno disso, quer sentir assim e viver assim, como se um sorriso dependesse do medo, do canto, do gesto e do desespero. Como se a dança dependesse da batida, da zabumba e do seu sorriso.
Sempre que você diz uma palavra parece boba e solta, mas eu sei (e talvez só eu saiba) que ela guarda toda uma profundidade que você não ousa dizer pra ninguém e que o que sobra é apenas a meiguice do ter dito e a gentileza do pós-dizer.
Vivo no seu mundo como um satélite, como alguém que de longe quer saber como é você. Justamente por isso em momento algum penso em intervir no seu jeito. Meu silêncio é aprendizado, e mesmo que eu leia qualquer filosofia é de você que posso aprender a vida. Que fique registrado aqui um carinho, como um gesto qualquer de um sujeito pequeno que não vale muita coisa. No máximo um sorriso, talvez. E que qualquer palavra minha embale seus sonhos...

26 novembro 2011

escuridão

Toco violão noite adentro e só me lembro de ir pra casa quando amanhece. Durmo o dia inteiro e acordo só pra trabalhar em um teatro escuro, sujo. A escuridão é minha amiga, minha profissão. A escuridão é um meio de vida. É como sou, escuro, denso. É só como consigo ser.

23 novembro 2011

ela e o ônibus

Entro no ônibus e sento ao lado de uma moça.
Eu: bermuda caqui, camisa preta, tênis sem amarrar, meia preta, rosto oleoso de suor seco, despenteado, com olheiras e sono.
Ela: pequena, linda, loira, roupinha de executiva, nariz fino dos mais lindos, olhos claros como tinta de aquarela, com os cílios bem pretos, a pele lisa e seca que nem de maquiagem precisa.
Choro. O olho enche de lágrimas que rolam. Poucas, secam antes de pingarem ao chão. Ela:
Porque chora?
A sua beleza.
O que tem?
Machuca, oprime, humilha.
Desculpe - ela faz uma pausa - mas por quê?
Essa sensação de que nada que eu faça - estude, brilhe, enriqueça - me torne um homem mais interessante. Nada disso pode fazer jus a você e sua beleza.
Entendo - diz ela.
Ela abaixa a cabeça e não fala mais. Nem eu. Entendemos. Três pontos depois ela pede licença para descer. Abro espaço, ela passa e, não sem esforço, me lança seu melhor sorriso. O último. E desce.

21 novembro 2011

empate

Tem tanta gente falando, tem tanta gente escrevendo, tem tanta gente pensando que às vezes eu gostaria de dar uma abraço em cada uma delas e falar: "brother, tá pesado, eu sei, mas vamos ver as coisas de um jeito diferente, vamos tomar uma cervejinha." Mas não dá, eu não sei dizer e vocês não sabem ouvir. Cada um compartilha a solidão. Aí eu penso no Flamengo, naquele meio de campo lento, nada criativo e percebo que a maioria das vidas é como o meio de campo do Flamengo: saudoso, melancólico, mas que me traz uma alegria. Minha vida é, então, um campo, bem grande, onde se quiser você pode vir bater uma pelada. Eu te ensino, chega pra cá, dá uma arrancada e faz gol.

a palavra

Bora lá,
vamo que vamo,
então manda brasa.

é quando a lingua triunfa sobre os sentidos.
é quando a poesia perde pras palavras.
é quando a palavra tá gigante,
tá falando muito,
tá reclamando pra caramba.

Daqui a pouco vai querer a chave de casa,
dar uma volta de carro
vai querer sua parte na herança.

estará certa,
vai querer o que é seu.

16 novembro 2011

A Mãe

Baseado em "Orégano"

Estava decidida a se matar. Planejara tudo com antecedência, mas não muita que é como se decidem os jovens. Há duas semanas atrás, sem motivo aparente, sem sofrimentos amorosos, familiares, decidiu que a vida era enfadonha e não valia todo aquele esforço. Lembra-se que estava em uma aula de filosofia e ouvia o professor falar sobre o sublime e a desmedida em Kant e que aquilo lhe parecera irreal: pensava que o tempo e a projeção que se fazia nele impedia a desmedida, afinal o tempo e o espaço eram esencialmente a mesma coisa.
Enfim, uma decisão tão importante nem sempre nasce com regras e ela, jovem e bela, havia decidido se matar e o faria ainda hoje, logo após anoiteicer, assim que terminasse a exibição de Chaves: era esta pureza infantil que queria como último sentimento. Decidiu que morreria com pílulas, era bonita e vaidosa demais para se matar pulando da janela ou se dando um tiro. O gás de cozinha havia sido uma opção, mas queria facilitar o trabalho da perícia em atestar se ouve acidente, falha ou suicídio.
Acordou cedo e decidiu escrever uma séria de cartas. Escreveu a primeira para sua melhor amiga, ficou entediada e decidiu que deixaria apenas uma mesmo, mais alegre, sem explicar demais as razões que a levava ao ato. A única coisa que deixou claro foi que ninguém tinha culpa de nada e que morria por preguiça.
Foi almoçar em um restaurante caro. Sentou-se em um canto movimentado e ficou olhando as pessaoas comerem. Não se sentiu feliz nem triste, lamentou apenas ser uma das últimas coca-colas da sua vida. Lembrou de uma história que ouvira certa vez na igreja. Estava entediada, de novo, e preferiu ouvir dois jovens bonitos que conversavam atrás dela que o padre. Dizia um:
Eu não acredito nisto que o padre está dizendo. Não dá pra saber o que é viver na eternidade, aliás, eu não sei ser de outro jeito além deste.
O outro respondeu:
Tenta engordar vinte quilos, ficar bem gordo e nojento, ninguém vai olhar para você, aí você aprende a ser de um jeito que não esse.
Pode ser – disse o primeiro – mas ser gordo não vai me ensinar a viver na eternidade.
Lembrou dessa história porque agora parecia claro que a única maneira de viver na eternidade era se privando do tempo, ficando sem contato humano algum, nem ao menos através dos meios de comunicação. Agora, isolada no restaurante, tinha a sensação de que viveria eternamente, como se já tivesse morrido. Decidiu, então, mudar de planos e passar a última tarde da sua vida sozinha, como se já vivesse na eternidade prometida não pelos padres, mas sim pelos jovens preocupados em serem magros.
Foi para casa e sentou no sofá. Tentou não fazer nada e não fez por um bom tempo, talvez uma hora na eternidade, sem pensar, só às vezes lembrando de fatos e pessoas que não sentiria falta. Pouco tempo depois, de súbito, levantou, foi até a cozinha e começou a lavar a louça. Queria a casa limpa quando todos descobrissem sua morte. E assim foi, depois da louça decidiu passar sua última tarde fazendo faxina. Varreu a casa, limpou banheiro, jogou papéis velhos fora e até esfregou azulejos que tanto custava fazer enquanto queria viver.
Enfim, terminou e, de novo no sofá, percebeu que começava a escurecer. Eis a hora. Sentiu nesses últimos instantes de vida que podia fazer qualquer coisa e percebeu que gostaria de um último contato humano.
Pegou o telefone, olhou para ele e discou um número qualquer. Chamava. Deu alguns toques, mais alguns e ninguém atendeu. Aquilo frustrou-a profundamente, afinal de contas assim é a vida: “sempre que dependemos dos outros, algo dá errado.”
Não se conteve, tinha raiva e abriu uma cerveja. Bebia devagar para tentar apreciar e dois copos depois se acalmou. Bebeu outra só para confirmar a volta da alegria. O telefone tocou. Sorriu, afinal, atenderia uma última ligação.
Pegou os remédios da despedida, colocou-os ao lado do telefone e atendeu:
Alô? Não, não é daqui, não, não tenho nenhum filho. José? Não conheço, desculpe, é engano, não chore, senhor, é engano. Onde o senhor está? Não chore, por favor, mas não é daqui não, deve ser um número antigo...
Estava perplexa. Não conseguia largar o telefone que repetia aquele sonoro tutututu. Quem era José? E que sofrimento era aquele que vivia? Como pode alguém viver sofrendo assim? Estava tão feliz com essa despedida sua e agora tudo parecia ruir. Como poderia morrer agora por conta de uma aula de filosofia quando um José, aparentemente com idade, ligava para sua mãe e lhe queria tanto e chorava e sofria?
A moça aquele dia não fez mais nada. Não se matou. Uma vida estava salva no reino dos céus e demoraria a chegar naquela aparentemente falsa eternidade. Mas não chegou a pensar nem por um momento que, naquela hora, alguém morria e esse alguém se chamava José.
E José morreu, sem saber que, no último instante, salvara uma vida.

ponto fraco

Um soco na cara. Pow, ou puf, não deu nem pra ouvir o som e tava lá o cara caído no chão, com aquela cara de pastel velho de feira e o outro em pé, imenso, gigantesco, descomunal com cara de vitorioso, se sentindo o maior dos homens do mundo. Era mais bonito, rico, bem sucedido, boa praça e simpático e mesmo assim resolvera bater no outro pobre coitado que pouco sabia porque apanhara, uma piadinha assim fora de hora, mas o que é uma piada perto da beleza, riqueza, sucesso e simpatia? Nada, pensava, mas era muito porque pra quem é bonito, rico, bem sucedido, boa praça e simpático nada pior que um cara pior com um humor ferino e uma inteligência escorregadia.
E o resultado é esse, otário, agora sangra aí no chão, babaca, cuzão. É isso que tu merece por ser folgado e idiota. Triunfal saiu o outro pela porta. “Umbral” pensou o mais fraco.

15 novembro 2011

para pensar

Abro o editor de textos pra pensar, mas não sei como se pensa. Não sei se o que penso é meu ou alguém pensou por mim. Não sei se já tinha pensado nisso antes ou se a ideia me ocorreu agora. Não sei se sou criativo ou repetitivo. Nada disso me aflige enquanto as letras correm e o texto se forma. Nada disso me aflige porque enquanto escrevo estou acompanhado por uma mão muito forte, mas também muito doce, algo que me lembra minha mãe, e me carrega até ao ponto em que nascidas as palavras, atinjo um pouco de paz.

Às vezes acho que estou ficando óbvio demais, mas ainda assim é melhor escrever e ser óbvio em paz do que qualquer guerra.

13 novembro 2011

descanso

quando o cansaço físico
é maior do que o nosso corpo aguenta
e nossos músculos, contraídos,
parece querer desistir
de nos permitir os gestos,
a alma descansa.

depoimento

Fiz um texto imenso sobre ver setenta crianças no palco encenando uma peça infantil que escrevi de cama, doente, imaginando o que agradaria cada uma. Era um texto que falava de todas as dificuldades que é viver e escrever sobre viver. Era um texto sobre uma ingenuidade primeira. Apaguei tudo, que fique só a sensação.

09 novembro 2011

a alma

Tento me ver em meu blog e percebo que, como já disse, muitas vezes não me reconheço. Meu blog não é um portal para minha alma. A minha alma, se existe, vive em uma profundo poço sem portas e sem acesso. Cada vez que tento chegar até ela, lanço um balde e puxo de lá aquilo que desejo e recebo apenas alguns goles d´água de palavras que pigam por todo meu exterior. Isso eu escrevo. Aí quem me lê tem a missão de transformar meus pingos em palavras e depois em sentido e, assim, atribuir alguma coisa a mim ou à minha alma.
Pode parecer ridículo, mas não há tarefa mais solitária do que tentar comunicar a alma com alguém. Ela, intraduzível, é gigante e o outro apenas uma portinhola. É por conta disso que devemos viver como se a alma não existisse e comunicar apenas aquilo que nossos olhos podem ver e o coração sentir. Deixemos a alma de lado, ela é pesada e se vier à tona será através de um sofrimento qualquer. Comuniquemo-nos pelo coração, só com ele, sem as convenções sociais e sem a prática do cotidiano. De resto, deixe que o olho veja, a boca fale, o ouvido escute, a pele sinta, o nariz cheire. E Que o amor construa.

06 novembro 2011

Trem

sou como um trem que joga uma fumaça densa e espessa pela natureza dando um toque urbano-bucólico por onde passa. Paro somente nas estações porque não posso parar. Meus descaminhos desbravam o interior desafetivamente e não chego a me importar com quem chega ou quem passa, embora não deixe de sentir saudades. Em meus vagões vão pouca gente, o caminho que sigo não é de grande interesse, nem popular, nem levará ninguém ao sucesso. Sou esse trem e dele não escapo. Sou esse trem que viaja o mundo, mas que nunca pode sair dos trilhos, pois seus caminhos são óbvios. Mas sou um trem, só isso, um trem entre muitos. E vou quase vazio.

04 novembro 2011

duromole

é preciso olhar pro mundo e endurecer o coração
é preciso ler poesia e amolecer o coração
coração duromole
coração moleduro
duromolemoleduro
é preciso um coração
de água mole
em pedra dura.

sem ti

nada que eu falo faz sentido
nada que eu falo faz sem ti.

30 outubro 2011

os olhos

Teus olhos
têm muitas cores
algumas que nem sei o nome

junto todas
faço um arco-íris de olhos
passeio pela íris e brinco
com a menina dos teus olhos

de canetinha
termino a obra de Deus
colorindo-os ainda mais
com as cores industriais

porém, aos poucos,
as cores começam a desbotar
e teus olhos, fustigados,
começam a escurecer
e a íris, lentamente, empalidece

a menina dos seus olhos cresceu
agora veste preto
está de luto com a vida.

Chora.
Tomara que seja birra.

o que não foi dito

Tenho vontade de um dia só falar aquilo que jamais foi dito. Nunca repetir uma idéia, uma frase ou história. Esse pequeno ímpeto me levará às maiores loucuras reflexivas e ao esforço máximo de renovação do pensamento. Ou...simplesmente, acabarei em um infinito silêncio.

28 outubro 2011

condição

Houve um tempo em que um homem lutou sozinho com os moinhos de vento
e, abatido, caiu derrotado e esperançoso.
Depois, foram grandes ventiladores que, monstruosos, ostentaram seus movimentos perfeitos e triunfantes sobre nossas cabeças.
Hoje somos seres frios, sem batalhas, acomodados e resmungões de ar condicionado.

27 outubro 2011

poesia da manhã

Acordo cedo e não me reconheço.

Não sei se madrugo ou se anoiteço
Se sou o que reclama ou o que pede
O que despenca ou o que desce
O que brinca ou amadurece

Não sei se me divirto ou se pereço
Se mergulho na praia ou atolo na serra
Se gosto do grito ou do silêncio
Se sou de família ou do bar

Oscilo e não me reconheço.

E quando deito
tenho uma saudade sem nome
(saudade talvez em inglês)
de tudo que sou
quando não estou sendo
ou que não sou
quando insisto em ser
e essa saudade
me empurra pros lados
pra baixo, pra cima
e a cabeça latejante
pensa, duvida
e até o último instante
acredita na sorte.

Enfim, durmo.
Acordo cedo e não me reconheço.

24 outubro 2011

pequena dor



O que eu escrevo é uma pequena coisa. Como diz Veloso e Tê, “uma pequena dor (que)/ quase nem sequer me dói / É só um pequeno ardor que não mata, mas que mói / É uma dor pequenina, quase como se não fosse...” E eu pouco vejo dessas dores por aí de tanto que as pessoas forjam dores gigantes assim como forjam amores. Mas a palavra dor não é certa, não se encaixa na pequena coisa que escrevo, pois que, mais que dor, trata-se de uma sensação que até então me era desconhecida e que apareceu tal qual no quadro de Hopper. Essa sensação não é a de isolamento, muito menos da incapacidade de lidar com outro. De tão pequena, ela pode ser dita como um desacerto levemente melancólico.
O quadro do Hopper chamado “Cinema em Nova Iorque” me passa essa sensação. A moça não é feia, não é triste, nem sofre. Parece talvez que, por um momento, nem que seja só aquele que Hopper captou, ela pare ao lado do cinema, entre a entrada e a saída e pense. Pensa na vida com uma profundidade que eu não sei mensurar, pensa tão longe que toda a razão do universo está contida ali entre assistir ao filme e ir para a rua. Não, é mais que isso, o filme é produto de segundo plano, ela pensa no sentido do evento social e da vontade profunda de se proteger contra o filme, de não se deixar envolver, de esperar, de lutar contra essa ficcionalização das narrativas. E aí, por segundos, ela estanca e o Hoppper, com ela pensa no que vai ser daquele dia, daquela moça, que não se pode saber nada com exatidão. Sabe-se apenas que dói, mas só um pouquinho.

23 outubro 2011

pássaros amarelos



Algumas imagens me livram de viver. Essa frase pretende sintetizar muita coisa e espero que ela o faça. Primeiro foi o texto da Clarice, depois a imagem do Klee, depois a aparência dos pássaros amarelos. Como é difícil viver depois que se sabe que existem pássaros amarelos. Às vezes a gente tem tanto medo de ser, de virar as coisas, que uma paisagem, uma canção ou um amor parecem um esporro, uma ode à liberdade. Mas é que é preciso se livrar de muita coisa pra ser livre, inclusive da ideia de liberdade, essa grande prisioneira de vidas.
É por isso que os pássaros amarelos são o que são e é preciso sentir o mundo de forma bastante sublime para entende-los. Eu gostaria de um dia poder ter a capacidade de transfundir minha existência em seres da vida. Gostaria de realmente tocar uma criança, de sentir um gatinho ronronar, de pular numa piscina e sentir a água na pele, de sentir o vento estragar o cabelo com um sorriso, de andar de mãos dadas sem que pareça que, no caso, um ser prenda o outro. Eu gostaria, enfim, de conseguir ser menos eu, quase nada eu, um não-eu, pra chegar até o outro e lhe tocar com uma beleza que não tem no mundo, assim como fazem os pássaros amarelos do Klee. Eles não existem e justamente por isso fazem os maiores vôos em mim.
E no começo de um dia, gostaria de ver esses pássaros cantar (rouxinol ou cotovia, Julieta?) chamando o sol que vem. Como anotou Buarque: “e o mundo compreendeu e o dia amanheceu em paz...”

20 outubro 2011

Menina bonita

Menina bonita fake,
aproveita a beleza que os outros vêem
e que tanto você trabalha na academia.

Aproveita e tenta calar o sofrimento
do teu coração de feia.

trabalho

Eu trabalho pra algumas pessoas.
Algumas pessoas trabalham pra mim.
E essas pessoas que trabalham pra mim tem também pessoas que trabalham pra elas.
E as outras pra quem eu trabalho também trabalham pra alguém.
Os maiores chefes do mundo trabalham pra alguém, nem que seja pro sustento de seus filhos.
Acima de nós apenas Deus que trabalhou intensos seis dias e depois deixou as coisas como estão, pra gente, trabalhando, resolver.

14 outubro 2011

o choro e a água

Choro debaixo do chuveiro pra não ver minhas lágrimas
e saio do banho com o corpo e a alma lavada;
Seco tudo com a toalha.

06 outubro 2011

inteligência, graça, banco

Eu costumava achar graça em quase tudo e pensava que existia sabedoria em qualquer lugar.
Depois comecei a achar que sábio era quem não se preocupava em o ser e parei de achar graça nas coisas de outrora.
Aí encontrei novas coisas pra achar graça, mesmo que elas não fossem inteligentes.
Depois passei a achar graça em tudo e a achar todo mundo incrivelmente estúpido.
O tempo passou e percebi a graça e a sabedoria nas coisas simples da vida.
Aí me achei irritantemente estúpido: não existe nenhuma coisa simples na vida.
Mesmo assim continuei achando graça.
Teve também uma fase boa: dissociei inteligência de sabedoria e fiquei burro.
Pouco mais, percebi que o sábio é muito malandro pra dar tudo de mão beijada, enquanto que o humorista é, no fundo, uma puta.
Pouco menos, percebi que o sábio é um babaca aristocrata que quer guardar tudo pra si e o humorista um ser altruísta, que leva felicidade a todos.
Hoje não acho nada. Nem uma coisa nem outra.
Hoje, por exemplo, eu vou até depositar um dinheiro no banco.

03 outubro 2011

humor

Nunca achei que eu fosse fazer isso, primeiro porque me parece patético, segundo porque creio que algumas coisas não precisam de defesa porque não configuram nenhum ataque ou ameaça. O que me estimulou a escrever, mesmo que breve e caoticamente sobre o humor (eis o meu tema) foi uma frase proferida ontem por Emílio Surita, apresentador e dono do programa Pânico, no rádio e na TV. Disse algo do tipo: Me solidarizo com os companheiros de humor, essa nova geração de comediantes que está mudando a televisão brasileira e digo aos jornalistas que 'se o humor está mal, o jornalismo também está.'. Essa última frase ficou algum tempo martelando na minha cabeça como se representasse algum problema. Vamos guarda-la por enquanto.
Lembro da função do bobo da corte. O bobo servia para divertir o rei e seus súditos contando piadas, fazendo peripécias e um dos seus instrumentos era a inversão de papéis. Ele se colocava no lugar do rei e fazia suas bufonices como se fosse o tal e nessa posição expunha os vícios dos governantes e até suas contradições. Ora, é claro o papel do bobo. A ele era permitido o que a ninguém mais, ou seja, colocar em cheque o lugar do rei. Como bobo, o que ele fazia ou dizia não era levado a sério e se era, servia apenas como instrumento de divertimento e não recaia como algo que devesse ser levado a serio ou investigado. O bobo, portanto, é o primeiro subversivo do absolutismo e quiçá o último, pois seu instrumento era a observação e a capacidade de atingir o âmago das questões.
Lembro também do carnaval. Bakhtin escreve um clássico sobre a carnavalização na idade média, mas não quero me ater a isso. Quero somente expor a inversão do carnaval. Lugar onde o rei é um bufão e onde quem manda é o malandro, a baiana e a mulata. O carnaval tem tal poder subversivo que, na sua vigência, as leis tornam-se mais sutis assim como os pactos amoroso-sexuais. O carnaval, muitas vezes, expõe um líder frágil e tonto, frente à torrente popular. O carnaval, das fantasias, inverte a ordem do cotidiano e provoca um choque de realidades que é visto com graça, tanto que se diz “brincar o carnaval”.
Vejo o humor atual. O que ele tem diferente de qualquer tipo de humor? Nada. É um humor comum, velho como qualquer outro, mas que parece que havia sido interditado por um humor televisivo de estereótipos. A noção de Freyre de novo se dá no Brasil: Casa Grande e Senzala. Há um humor de dentro da casa e um humor da rua. Uma coisa é permitida aqui e outra ali e ai de quem resolver misturar. Acontece que sempre há novas gerações, e principalmente uma geração internet, cujo humor é produzido dentro de casa e exposto do lado de fora, ou seja, uma geração que não encontra o limite entre cá e lá tão bem exposto e resolver misturar tudo. O humor ganha, pensamos todos, penso eu, pensa o humorista e pensa o cientista político.
Todo mundo concorda que o novo humor é bom e ponto, isso é fato. Aí é uma raça, e agora eu retomo, chamada jornalista, o verdadeiro alquimista do século XXI e transforma tudo em qualquer coisa. A fórmula é simples: tira o humor do humor, pega a frase de humor, agora sem humor e a expõe fora de contexto para que qualquer um leia. Eu leio, você lê, qualquer um lê e pensa: “Que execrável, este senhor feriu princípios...”
Pronto, eis a minha explicação sobre a perseguição ao humor atual. Uma bobagem, pequena, insignificante que os jornalista tentam manter com forno a lenha para que os infinitos e sucessivos programas de debate e as colunas sociais dos sites que precisam ser atualizadas a cada segundo mantenham-se em funcionamento sem que esses profissionais precisem de demasiado esforço, afinal de contas, tem uns caras aí falando umas coisas que não pode, né?

01 outubro 2011

Futebol: A Insustentável Necessidade de ser Ídolo



A vantagem de ter apenas 26 anos é que, ao falar de futebol, o saudosismo não me invade, nem a memória cria subterfúgios falsos para análise. Imortal, para mim, no futebol é somente Romário e todos os outros são apenas candidatos do futuro. O que me reservo a dizer é apenas uma impressão do passado. Pelo que me parece, jogar futebol era mais que uma vocação, uma inclinação pessoal do jogador. Sem mistificação, a maioria deles não sabia fazer muitas outras coisas: não tinham estudo, não possuiam grande eloquência nas artes ou no discurso e o futebol era a maneira popular de expressar uma arte, uma inclinação pessoal para a beleza. E assim, jogava-se bola como um poeta: boêmio, malandro e transgressor, fazendo da bola um parceiro das peripércias inesquecíveis por uma platéia voraz.
Faço um salto para olhar um fato específico: a necessidade dos jogadores da atualidade em se tornarem ídolos. Jogar bola sim, se divertir com ela também, mas antes de tudo é preciso ser ídolo. A permanência de Neymar no Santos nada tem a ver com futebol, dinheiro, status, mas sim com a vigência de vir a ser um ídolo em seu clube e ver seu nome figurado ao lado de Pelé. Ronaldo, ao deixar a possibilidade de jogar no Flamengo e ao aceitar a proposta do Corinthians, percebeu que no seu time do coração, onde realmente poderia ser ídolo, já havia muito de sua vida pessoal com incidentes pessoais, problemas, histórias e controvérsias. No Corinthians, torcida apaixonada, ele reviu a possibilidade de recomeçar a construção de uma imagem de ídolo, agora nova e que se perpetuaria para a eternidade do clube. Esse fato chega a me espantar, como se Ronaldo, com o futebol que possui, precisasse realmente disso para ser um ídolo. Até a escolha de Adriano pelo Corinthians, após ter sido taxativamente negado pelo Flamengo, é a única possibilidade que ele vê de jogar bola e, ainda sim, ser visto como ídolo.
Esse fato tem se sudecido por tantas vezes que o que vemos são ídolos forjados, fracos, sem idolatria, a não ser aquela forçada pela impressa e atestada pelos tolos apaixonados. Tanto que alguns ídolos chegam até a renegar o status de tal, como Zico ao ver que seu nome acaba por se sujar ao ser colado à seu clube de coração. Poucos sabem se colocar na posição de ídolos e representantes como Rogério Ceni e Marcos; a maioria, buscando uma idolatria a qualquer custo, se rende a uma falsa masturbação de notícias com seu nome, elevando-o à status que nem ele mesmo pode prever e previnir, fazendo do nosso futebol um enorme berço de ídolos de segunda, fracassados, que caminham para finais de carreira triste, em que foram pouco ídolos em muitos clubes e amados apenas pelos tolos, nunca por aqueles que vem o futebol como a maior manifestação da beleza.

29 setembro 2011

Clarim e Rosaura


Conto livremente inspirado nas personagens de “A vida é Sonho” de Calderon de La Barca


Sentado de frente para um campo aberto, que culminaria num rio lá embaixo, estava o Clarim que vestia calça e camisa pretas, justas e gastas, que mais pareciam pijamas. Olhava Rosaura que atrás de uma grande árvore mudava de roupa: primeiro jogara a longa saia para o lado, depois a blusa e agora, ao terminar de aperta a cinta, buscava numa sacola umas roupas. Eram pretas também. Uma calça e um casaco que contrastavam com a camisa branca que botara por baixo. Amarra os sapatos, veste um cinto e sai de trás da árvore dizendo a Clarim: “E por quê você não se vestiu?”

Porque eu só me visto quando me mandam me vestir, como minha senhora não mandou que eu me vestisse, eu não me vesti. Por acaso, o senhor a viu?

Rosaura ri largamente, dizendo a Clarim que era ela quem ali estava, não havia homem nenhum e que ela assim se vestira porque tinha uma missão. O gracioso com cara curiosa disse dando de ombros: “ói, então eu sirvo um que é dois.”, levantando-se e indo ele para trás da árvore se arrumar.
Por cima da calça preta vestiu uma xadrez colorida de verde e vermelho que por estar curta e ele estar sem meias, tinha um toque cômico, pois o fazia andar curvado. O longo casaco que vestia e cobria a calça quase que até nos joelhos era também da mesma cor e tinha botões amarelos. Depois de tudo ainda vestiu um cinto vermelho, que ajustava a casaca na cintura e um chapéu bege com uma longa pena laranja. “Estou pronto”, disse empunhando uma espada de madeira, ao mesmo tempo que Rosaura, travestida, guardava na cintura uma espada dourada e brilhante.
Iam os dois a andar, sempre com um cantil de água na mão. Rosaura um pouco desajeitada por não saber andar tal qual homem levava constantemente a mão à barriga e à espada ajeitando-se dentro do paletó. Clarim possuía uma leveza no andar e no olhar que o fazia, apesar de ir sempre atrás de sua ama, parecer mais livre, mais dono de seu destino, o que era estranho, uma vez que seus rumos estavam subordinado ao de sua patroa. Ele ia à frente, apesar de ir atrás.
Ao chegar próxima ao rio, Clarim ultrapassa sua dona e começa a correr até chegar na água. Num ímpeto de alegria, vira uma ou duas cambalhotas e pára justamente a alguns centímetros da margem, rindo alto, feliz. Cata um graveto e começa a fazer uma redemoinho na água, espantando os peixes que por ali passavam. Rosaura que chega poucos instantes depois não consegue deixar de sorrir, apesar de ter um fundo olhar de preocupação, cujo olhar Clarim não consegue deixar de reparar:

Oi. Se você tá assim, com essa roupa e com essa cara, é porque não deve estar nada bom, né?
Ruim não está, mas pode mudar também.

Nesse instante, aparece por cima deles um enorme trenó sendo carregado por dois cavalos brancos. Clarim segura Rosaura pela mão e a leva correndo atabalhoadamente para dentro do carro, não conseguindo evitar de reparar na beleza dourada do transporte. Com os dois bem acomodados e um pouco nervosos, os cavalos começam a andar pela relva e pouco depois o trenó começa a levantar vôo subindo e subindo. Cada vez mais alto, chega até uma nuvem, a única que tinha naquele céu da tarde mais bela daquela primavera . Aos poucos bem aos poucos, ele vai se tornando menor e menor até desaparecer por completo no imenso azul claro do céu, que de imóvel nos traz somente um som: o de uma risada já longínqua de Clarim.

2008

27 setembro 2011

biografia

Cada dia que passa aparecem novos eus: uns bons, outros maus, alguns construídos, outros involuntários, alguns planejados, outros produto das contingências. Eles vão se sucedendo entre tantos mins que chego a perder de vista até onde posso chegar comigo. Creio que não muito longe. De qualquer maneira, que todos meus eus, dos céus azuis e dos blues, devem necessariamente ficar fora de minha biografia. Que tal uma biografia composta por tirinhas de humor negro?

14 setembro 2011

luiz e antonio

Eu sou o Luiz, pelo menos para a maioria. Alguns me chamam de Luizinho e tal, mas isso faz de mim apenas um Luiz, ou um pequeno Luiz. Acontece que me chamo Luiz Antonio e que, portanto, também existe um Antonio em mim. Ele é uma espécie de alterego meu, mas não é meu oposto, nem um complemento, pelo contrário, ele até parece muito comigo, mas é outro. Ele tem composições diferentes e isso muda tudo. Ele também é pequeno, mas é mais forte, mais cofiante, no entanto, é também mais reclamão e deprimido. O Antonio convive com o Luiz a cada dia e acompanha seu crescimento e sobrevive da atenção que este lhe dá. Ele é um pouco invejoso por não ser reconhecido pelo mundo e às vezes até reclama um lugar no mundo, o que o Luiz lhe dá quando escreve: assina Luiz ao lado do Antonio, afirmando ao mundo que a obra é dos dois.
A questão é que o Luiz que vive e o Antonio é uma sombra, uma companhia, um Sancho Pança. Muito eu tenho a falar dessa relação entre os dois, mas creio que aqui não cabe.
Um dia precisamos falar desses duplos, daqueles que ninguém diz. Um dia. Vai demorar, Luiz é muito importante e eu também.

10 setembro 2011

astronomia

Astronomia nunca me fascinou. Não vejo graça em saber o que há do outro lado do mundo ou dos lugares recônditos onde o universo foi criado e vive sem a participação humana. Minha falta de interesse advém do fato de que um lugar em que jamais poderei ir, mesmo que fotografe e entenda como funciona, é apenas um espaço virtual. Amplio a noção: qualquer lugar em que eu jamais possa ir, simplesmente é um não-lugar, ou seja, um lugar de não-participação e um lugar que não interessa saber o que se passa, ao menos que haja algum risco para minha galáxia ou simplesmente a terra, meu lugar.
"Ah, mas você pode descobrir como funciona tudo no universo, pode entender qual o sentido da vida, de onde viemos, pra onde vamos." Ok, entendo o desespero, mas preciso nega-lo.
Acho que, se é um lugar que não posso participar, qualquer dúvida em relação a ele é falsa. Descobrir se a vida em outro planeta não altera absolutamente nada no curso do mundo. Descobrir água ou qualquer outra coisa também.
Aí vem as pessoas dizer que é típico do humano querer conhecer mais. Concordo, mas é preciso saber O QUÊ é preciso saber mais. Perguntas cujas respostas não alteram o curso do mundo de nada valem. Ir a lua não significou nada além de ir a lua. Se com o universo for possível entender de deus, o que isso mudaria também? Acho improvável que ele exista mais ou menos do que já existe. A existência de deus não depende da existência de deus, depende das pessoas pra propagarem essa idéia e a grande verdade ele só vai poder existir como um deus livre quando ele deixar de existir. É um paradoxo dos bons.
Gosto de usar pra entender o mundo o conceito de "random". Tá tudo aí meio que quase sem regras e as regras que estabelecemos simplesmente não servem pra alimentar os mais pobres nem pra entender mais da condição humana.
De qualquer forma, aos estudiosos deixo meu abraço. A dedicação de vocês é algo que admiro, é preciso muita fé pra olhar pro céu, ver tudo que vê e ainda assim querer dar uma regra pra esse azul escuro.

05 setembro 2011

vazio

Faz quase um mês que não posto no blog. Entrar nele hoje e olhar me deu uma sensação de vazio, senti vontade de escrever, filosofar sobre qualquer coisa ou simplesmente preencher aquele vazio. Depois pensei que não, que era ruim preencher o vazio, que estamos acostumados demais a não aceitar pequenas partes incompletas em nós e nunca aceitamos fracassos ou perdas e enchemos alguém de palavras, insultos, ou simplesmente, barulhos.
Pensei no valor de não escrever hoje.


Mas escrevi.

17 agosto 2011

dor de barriga

Minha barriga dói. Tenho medo que seja apêndice, mas sei que não é. Tenho medo que seja torção de testículo, tudo indica que não é, mas como já foi uma vez...Jogo no google: "dor aguda na barriga" e eles me diagnosticam com várias doenças. Leio todas, sou hipocondríaco. Ela só para de doer quando estou sentado. São 4:47 da manhã e nada. Não acordo cedo, achei que teria uma noite de descanso, mas não. Durante a noite tudo fica estranho. Dói mais, dor mais longa, quase eterna.

15 agosto 2011

sexo e marketing

“A liberdade sexual se transformou em marketing comportamental”, disse Luiz Felipe Pondé agora pouco no Roda Viva. Ele ficou muito conhecido quando na eleição do Papa Bento XVI pareceu ter ficado satisfeito com a escolha. Na verdade, ele acaba de dizer que Bento havia feito na década de 80 uma crítica à Teologia da Libertação que cairia ou no marxismo, abandonando a ideia de Deus, ou na auto-ajuda barata e, nesse sentido, apoiava a opinião do Papa. Bom, assim sendo, eu também apoio.
Mas o que ficou na minha cabeça foi a frase sobre a liberdade sexual. Segundo ele, a conquista da década de 60, resultou em liberdade e insatisfação. A necessidade de alta performance social, política, atlética, intelectual do ser humano atual culmina em uma tentativa absurda de se mostrar absolutamente livre em relação ao sexo, e se configura no enclausuramento do desejo e na obrigatoriedade de coitos excessivos com performances pernósticas, históricas de um gozo infinito.
Essa prisão que é a obrigação da performance e mais, do marketing que se faz da performance que deve se evidenciar em vestígios corpóreos, torna o ser humano em um ser sexualmente biônico, uma vez que os defeitos perdoados na vida cotidiana são imperdoáveis na atividade sexual, correndo o risco de se ser conhecido como careta, antiquado e conservador.
É preciso olhar melhor para a questão do marketing. O sexo é uma questão pública. É preciso que se veja, no corpo e nas palavras, que aquele ser é o mais perfeito para a atividade sexual e, qualquer outro tipo pode ser esmagado por esse corpo gigante e sexualizado.
Pondé diz que, para o sexo, o pecado faz melhor que a liberdade e que, justamente por isso, a Idade Média era a época em que mais se praticava sexo. Percebo a comparação que ele faz: é como se atualmente o ser humano fizesse uma auto-masturbação a dois, onde se chega ao nível máximo, da velocidade cinco, como se o outro fosse substituído por uma máquina que não lhe permite escapar.
O sexo, aquele tântrico do dia inteiro que começava no primeiro olhar, no primeiro toque e nos beijso infinitos, aquele do kama sutra que buscava o prazer em tudo que contém o corpo do outro, parece ter morrido. É preciso fazer sexo como se consome, até o dia em que vamos finalmente nos tornar oswaldianos e vamos comer a nós próprios.

14 agosto 2011

tão banal

Sempre fui adepto à breguices. A tragédia que é a vida cotidiana me fascina, justamente porque nada parece se destacar de uma mistura bruta de pequenos fatos sem que haja qualquer hierarquia entre eles. É tudo igual, desde uma nota dez de uma prova até a espera de um ônibus. Eu gostaria que as coisas fossem épicas, que todos os gestos lembrassem um exército de gladiadores invadindo uma cidade, pilhando tudo, pulando as regras e tornando o comum em história. As pequenas narrativas não fascinam, enfastiam apenas.
E aí que tudo tem um gosto de pão dormido e parece repetitivo. É como o Benjamin diz, a grande catástrofe é que nada acontece. Esse é o maior problema. Claro que uma mente analítico-clichê diria que se a vida fosse feita de grandes momentos não haveriam tantos grandes momentos ou que, no fim, ficaríamos cansados desses momentos, uma vez que ninguém aguenta todo o tempo com grandes emoções.
Eu sei, eu também entendo isso, também quero conforto, sono, cama e filmes, mas a memória é violenta, desvirtua os fatos e a gente nem consegue mais olhar as coisas com lucidez. Só pode ser lúcido um ser sem memória, porque só ele é capaz de ver as coisas longe desses tentáculos do tempo que passa.
É essa a tragédia e é ela que eu sinto...daí eu resolvo escrever e fica tão banal, tão idiota que nem parece que fui eu que escrevi, logo eu, aquele cara que gosta de ser político, que assiste filme dando nota ao invés de mergulhar na história. Essa é a tragédia e eu não sei fugir dela, na verdade não posso, porque é dela que eu sou feito. A catástrofe é ter que pra sempre existir dentro do comum, do corriqueiro, dentro de paredes de quartos.

11 agosto 2011

a falha na democracia

Eu sempre desacretidei na democracia. Não que seja contra ela, mesmo porque é sabido que ainda é a forma menos agressiva de governo ao instinto humano assassino. Sou contra, pelo menos, ao nosso modelo democrático de representação. Acredito mais, na verdade, em um modelo de participação, em que se misture o ativo e o passivo e que a ação social mobilize ao invés de incluir a exclusão.
Meu exemplo da falha da democracia é simples. Onde trabalho está havendo uma eleição para o nome do Mascote do clube. As crianças propõe o nome e depois votam nos que preferem e, elegendo-se um nome por turma, se chegará a um turno mais geral onde será escolhido o campeão.
Em uma turma foram dados 10 nomes, a quantidade de alunos que havia, por parecer pouco ou não haver nenhum que agradasse foi pedido mais 3 e assim fecharam-se com 13 candidatos. Para que nenhum aluno votasse no próprio escolhido, pediu-se que eles votassem em dois. Foi quando um nome começou a despontar como favorito, inclusive com torcida. Trata-se de Rey. Entretanto, esses que votavam em Rey eram obrigados a votar em mais um, então escolheram Frut, um daqueles candidatos que apareceram por último, por parecer impossível de vencer.Um outro grupo se colocou claramente contrário a escolha de Rey e, percebendo a manobra anti-democrática, também começou a votar em Frut, simplesmente para fazer frente a Rey, mas sem convicção e sem haver outra preferência. Um outro nome, Boy, corria por fora, pois esse segundo grupo votava em Frut para dar força e em um outro qualquer, por conta da regra estabelecida. Assim ficou formado um segundo turno com Rey, Boy e Frut.
O grupo que queria Rey gritava, batia palmas e entoava coros, era formado por metade da turma mais um. Os demais faziam oposição sabendo que provavelmente perderiam. Até que começa o segundo turno e os que votavam em Rey, no segundo voto, distribuiam entre Frut e Boy, para enfraquece-los. O outro grupo além de votar em Frut, agora uma decisão fortalecida, votava em Boy .
Com grande espanto no fim da votação o resultado: Frut foi o vencedor, Boy o segundo colocado e Rey, o único com torcida o último.
É isso. Como explicar?

03 agosto 2011

poucas palavras

eu queria escrever com poucas palavras
mas só consigo escrever pouco
com muitas palavras.

por que eu não escrevo um romance

Essa é a pergunta e eu descobri a resposta: porque eu não vivi nada. É preciso muita experiência na vida, muito ateísmo frustrado, muita discussão sobre o nada, muita briga, porrada, muita injustiça, preconceito, racismo, entre outros. É preciso que muita coisa ruim aconteça para que a experiência deixe de ser na carne e se incorpore nas fibras, nos poros, nos sentidos.
A juventude tem alguma coisa feliz no corpo. O corpo jovem é elástico, obedece, faz rir e se recupera rápido de qualquer coisa, isso impede que se sinta as coisas por tempo suficiente. E um romance, pelo menos um dos bons, maduro, precisa dessa coisa aí que não sei o nome. Foi-se o tempo em que se sabia o que escrever porque o mundo mesmo dizia. Agora que escrever é inútil que o ato da escrita se torna mais importante ainda. Isso é essencial: em um mundo que NINGUÉM lê, a função do escritor é ainda maior, vital, quase uma natureza.
E eu não escrevo um romance por tudo isso e se você escreve é porque não pensou o que eu pensei e, portanto, seu livro não me interessa.

02 agosto 2011

anti-sabedoria popular

Algumas vezes me espanta a sabedoria popular, como o conselho esperto de uma senhora pra uma moça aflita com seus relacionamentos ou a opinião crua de um pedreiro que já viu tanta coisa que nada pode lhe surpreender. Do outro lado, há uma completa estupidez popular que faz parte de um pensamento rápido, em síntese, não dialético, que reage a tudo e transforma a mais intensa descrição da sociedade em algo corriqueiro e feio.
Matou a mãe porque ela não fez batata-frita.
Um motorista de ônibus insiste em correr, insiste. Parou pra mim, mas antes de eu subir já arrancava, um senhor quase caiu ao fundo e pediu atenção. Um grupo xingou o moço que não parou no ponto. O ônibus teve de fazer uma parada brusca, violenta, por conta de um carro que atravessou a pista. Um motorista de ônibus insiste em correr, insiste.
Eu, do meu canto, fico tentando entender como isso pode se dar. Eu, do meu canto, fico tentando entender como isso pode não mudar.
Adolescente está grávida do monstro da Paraíba.
E o mundo continua...

30 julho 2011

meu problema com clarice



Não posso dizer que não gosto de Clarice Lispector, mesmo porque “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” é uma das obras mais sublimes que já li. Posso, entretanto, dizer que tenho um problema com ela, algo ideológico, filosófico, estrutural.
Primeiro de tudo, acho que o autor deve, ao escrever, tomar todo o cuidado para não ser mal lido. É preciso mão firme na escrita afim de que o leitor desavisado, romântico de final de semana, não apreenda sua obra para fins duvidáveis como afogar uma mágoa, dar recados semi-amorosos ou qualquer sentimentalismo do tipo.
Segundo, meu lado materialista me leva a pensar na relevância dessa viagem interior. Até que ponto ela gera independência ou até que ponto ela é alienante? De cara, uma viagem para o auto-conhecimento me parece apenas alienante e, por conta disso, não leva a nenhum tipo de consciência social, política, ou algo que contribua aos outros. Por outro, é possível que na mudança de um em efeito dominó mude-se todo.
Enfim, me debato. Por via das duas implico com a pobre Lispector, que pouco tem a ver com minhas elocubrações a seu respeito. A verdade é que o consumo transformou Clarice em uma conselheira amorosa, assim como transformou a frustração em motivo para se gastar dinheiro. É assim que funciona: enquanto houver consumo, haverá felicidade. E o que há além? O amor, ou ele é mais uma parte dessa ordem do consumo?
Sinto-me velho ainda com essas discussões, mas me reservo o direito de não recomentar Clarice Lispector a qualquer um...pode ser prejudicial.

28 julho 2011

O flamengo, o futebol.






No decorrer da minha breve-longa vida já fiz muitas homenagens ao Flamengo. Parece-me, no entanto, que é sempre pouco, sempre menos do que ele me dá. Talvez porque paixão não se explica e não se homenageia, talvez porque eu nada pedi dele e porque ele nunca me pediu pra ser gostado. Acontece o que acontece e nossa parceria é eterna e eu preciso falar disso.
Quando meu time entra em canto parece que estou numa batalha e os jogadores são gladiadores que entram em canto pra defender a honra de um país. Parece que ouço trombetas soar e escuto a marcha da companhia e eu, do meu lado, mesmo que longe, preciso apoiar, preciso apontar meu coração pra eles, a fim de que tudo corra bem e que saiamos vitoriosos.
Aí acontece às vezes, bem às vezes, do Flamengo tomar um gol. Olha, minha cara vai lá embaixo, quase me sinto derrotado. Tento não ver o gol, tento não falar. Parece que resumo minhas necessidades físicas ao básico pra que aquele sentimento passe rápido e volte a ser aquele anterior, da luta, da batalha, da raça...
Mas quando meu time faz um gol...aah, quando ele faz um gol é a maior alegria do mundo. Salto da cadeira, pulo grito, soco parede, abraço quem estiver por perto e grito gol como se fosse meu e louvo o artilheiro como se fosse um rei. Aquele momento pequeno, fugidio, etéreo fez as maiores alegrias da minha vida. Ouso dizer que o Flamengo nunca me abandonou, nunca me decepcionou. Uma vez, em um título, liguei pra casa chorando, falei com minha mãe e ela: “calma, meu filho, calma.” Ela entendeu, ela entendeu o que quase ninguém entende. O futebol é irracional, por isso, belo. O futebol é um espetáculo teatral, é o melhor teatro do mundo. É o que o teatro, o cinema e a literatura tentaram ser e não conseguiram e o Flamengo...o Flamengo é o maior gênio, o ídolo, a estrela dessa grande arte. A primeira no meu coração, a primeira no meu país Brasil. Alienante? Alienante é parar de falar e pensar, enquanto houver gente falando, gente pensando, o futebol vai ser uma paixão. E quem vai dizer que paixão acaba rápido?

27 julho 2011

teatro por crianças: a bolsa e a passarela




Cena sem Palavras I

Quatro meninas: duas modelos, uma fotógrafa e uma assaltante. O cenário é uma passarela, um corredor com um tapete vermelho. Menina um desfila na passarela com uma bolsa. Para em frente à fotógrafa, faz poses, sorri. Vai até ao outro canto da cena, olha para a platéia, faz poses, sorri. Vira-se, vai até o fundo da cena, entrega a bolsa para menina Dois. Menina Dois desfila na passarela com uma bolsa. Para em frente ao fotógrafo, faz poses, sorri. Vai até ao outro canto da cena, olha para a platéia, faz poses, sorri. Vira-se, vai até o fundo da cena, entrega a bolsa para Menina Um. Menina Um desfila na passarela com uma bolsa. Para em frente ao fotógrafo, faz poses, sorri. Vai até ao outro canto da cena, olha para a platéia, faz poses, sorri. Vira-se, vai até o fundo da cena, entrega a bolsa para Menina Dois.Vira-se, vai até o fundo da cena, mas muda de ideia, resolve dar um último aceno para a platéia. Escorrega e cai, deixando a bolsa cair no chão.
Menina Assaltante entra, sobe na passarela, pega a bolsa e ameaça sair. A fotógrafa, no entanto, tira uma foto sua que prontamente desiste do roubo, deixando a bolsa caída no chão e resolve desfilar também. Para em frente ao fotógrafo, faz poses, sorri. Vai até ao outro canto da cena, olha para a platéia, faz poses, sorri. Quando se vira, vê Menina Um e Menina Dois estão disputando a bolsa. Corre até elas e entra na disputa.

As três formam um triângulo, cada uma segurando uma ponta do objeto. A fotógrafa olha para a platéia, dá um sorriso, uma piscada e tira fotos das três que sorriem para a câmera. De súbito, caem. A fotógrafa rouba a bolsa e sai. As três, frustradas, ameaçam correr atrás da fotógrafa, mas desistem.

Saem, cada uma para o seu vértice do triângulo. A luz se apaga. Vê-se apenas a câmera fotográfica caída ao chão.

25 julho 2011

Da minha Janela



Da minha janela eu vejo o ocidente. O passado e o futuro em perspectiva renascentista, um à frente outro atrás, mesmo sem saber qual dos dois vem primeiro. Vejo sudokus e mangás: kamikazes sorridentes que dizem arigato. Da minha janela não vejo a rua, mas sei que ela é pálida, ríspida, melancólica e turbulenta. Eu vejo a rua como um cara, maneiro e sorridente, malhado e sexualizado. A rua é uma criança, tal como o ocidente. Da minha janela eu vejo muitas coisas: continentes e países. Vejo muitos oceanos não muito pacíficos, mas na maior parte do tempo voyerísticos - que nos olham sempre que os olhamos com fetiche. Da minha janela vejo muitas coisas que tenho preguiça de dizer, uma preguiça ocidental de dizer o que vejo da minha janela. Porque dela vejo um espelho, ou até mais, da minha janela vejo outra...

24 julho 2011

o turista

Algumas abstrações se concretizam. Pensei agora na noção de “turista”. O turista, na abstração, é um ser que se desloca de um espaço para outro apenas para visitar por um curto espaço de tempo e depois retornar para aquele que é seu espaço. Assim, seres de outros lugares visitam a casa do morador e o morador quando vai à casa dos outros, torna-se o turista. Logo, ninguém é turista, a noção é vaga e exprime uma certa noção de deslocamento no espaço.
Comecei a tentar enfraquecer o termo. Qual o papel do turista? Lazer, cultura, diversão? Os três? Então, um Museu com ampla visitação turística pode se dizer que é uma construção apenas para essa parte da população? Então a cultura que o Museu representa é construída para um outro? E porque nós vamos ao Louvre e tiramos foto e vemos o valor enquanto que o Museu da esquina não é visto?
O turista quer lazer, vai a restaurantes, mas será que vai aos mesmos que os moradores? Ou o turista tem points diferentes? Na diversão a mesma coisa acontece? Começo a pensar no turista como uma fanstamagoria, como um ser inexistente, invisível, que movimenta a economia sem que a população perceba que ele lá está, ou então, se percebe trata de ignora-lo, fingir que não percebeu. Aumento essa noção para as construções para turistas: uma praça longínqua, um restaurante pra turisa, uma loja de souvenirs nada mais são que sombras, fantasmagorias, espaços urbanos da cidade que inexistem, porque não é feito para uma pessoa ou para um público. Ele leva em conta a concretização da abstrata noção de turista para existir e sobrevive de um público que é absolutamente desconhecido e impossível de se capturar.
Passa-se pela noção de exótico. Aquilo que é diferente do nosso necessariamente deve chamar atenção. Portanto o mercado, e provavelmente a faculdade de turismo pensa muito isso, precisa se voltar para esse ser abstrato e acéfalo que é o turista afim de explora-lo o máximo possível. Alguém que mede os gastos em restaurantes na sua cidade, como turista perde a capacidade de percepção e se faz disposto a gastar mais. O mercado explora o turista que não existe.
É interessante como se criam categorias inexistentes e ainda assim o sistema dá um jeito de transformar isso em mercado. E o turista, esse fantasma de qualquer cidade, passa a ser um ser importante, mesmo que não seja ninguém.

argumento para um filme

Um jovem artista começa a fazer sucesso como ator. Em um evento de um canal de TV, ele vê uma moça e se apaixona por ela, no mesmo momento, seu pai e empresário sofre um acidente e é assassinado. Uma mulher um pouco mais velha que ele se aproxima, e o ajuda a superar esse momento. Eles se casam, mas o jovem nunca esquece a moça da juventude. Anos depois, perto dos quarenta, ele descobre uma doença rara em sua esposa e com isso começa a descobrir pequenas falhas no seu passado.

No momento da morte ela reconhece que foi paga para os dois ficarem juntos, que o assassinato de seu pai fora planejado pelo canal de TV. Ele pergunta sobre a moça, a esposa morre. O jovem, agora velho, vai ao canal de TV e, no momento que entra no ar, começa a fazer uma breve explicação sobre o que acontecera. O canal sai do ar, ele vai até a direção e explicam-nos que nada daquilo fora planejado por eles, mas por um diretor que já havia morrido e que ele nada poderia reclamar porque aquele canal lhe tornara famoso, rico, o homem mas bem sucedido e querido do país. Ele sai xingando a todos, pega tudo que é seu e sai da empresa. Na porta, encontra a moça de anos atrás. Os dois casam.

Corte de tempo evemos a moça sugerindo que ele volte ao canal. Ele diz que voltará e pergunta se ela também foi paga. Ela diz que sim, que foi paga, mas há 40 anos atrás.

22 julho 2011

pra ela três

cândice,
feliz e bela,
como na foto de criança
que eu tenho em minha estante;
e nem por um instante
eu faço jus a tua dança.

e quando chora
- se é que teu choro é choro -
penso que nada mais há:
a felicidade tranparente
sobrevive a custa de ti.

aí te vejo triste e não entendo
do que é que se fez o mundo.
Encerro qualquer contato com a realidade
e minha poesia se aproxima da prosa
sem a cor de uma estrofe anterior

Se está triste
é que alguma coisa deu errado
nos planos de Deus.
Se está triste
é que está faltando
um pouco de ti
nos braços meus.

21 julho 2011

o buraco

Já vinha eu falar de outra sensação por aqui. Agora é a sensação de terminar de ler uma obra-prima. Acontece que um outro pensamento me bateu: Por que escrevo tanto sobre sensações?
Não sei, escrevo pra pensar. Eu sou um materialista praticante e, justamente por conta disso, percebo que as sensações me escapam. São reações químicas que produzem resultados absolutamente indescritíveis, que estão no campo do sublime, coisas que nos tomam e quase ganham vida dentro de nós. Quando uso a palavra coisa, uso de propósito, a sensação é uma coisa, porque é uma matéria invisível que sentimos passar por dentro de nós e como vem, atravessa e sai, deixando um buraco.
O buraco que a sensação passa talvez seja o problema. Acho que escrevo sobre esse buraco. Ele fura nossa razão, nosso raciocínio lógico, mas não coloca nada no lugar. É como se ele tirasse uma viga de um prédio que permanecesse em pé, mesmo que cambaleante. Esse buraco precisa ser preenchido novamente. A maioria das pessoas se reveste de queijo suiço de pequenos buraquitos que viram quase caminhos de formigueiro. Outras pessoas escolhem uma pessoa pra fazer o buraco: o amor, e nisso se tornam superficiais. Quem ama demais, não pode sentir muito amor, as duas coisas se excluem.
Acho que descobri então, deixa-me resumir: sou materialista, mas com sensibilidade, então as sensações abrem buracos na minha existência e esses buracos desestabilizam aquilo que sou, portanto preciso preencher esse buraco para me manter em pé e dar sentido às coisas. Minha forma de dar sentido é escrevendo justamente sobre esse buraco que se torna algo como uma peça de cristal ou uma planta que cuido.
Saber que existo é bambear pelo buraco das sensações sem nunca me deixar ceder, pois ceder ao buraco é fraquejar. É entrar na armadilha e na mentira que as sensações montam: elas devem desestabilizar para criar ou um outro ser e esse outro ser tem responsabilidades e não pode ceder ao primeiro poço dos desejos que vê.
Poderia agora escrever sobre a sensação de um livro, mas não, acho que já disse o que tinha pra dizer.

18 julho 2011

casa nua

Conto-paródia baseado em "A calça secreta" de Machado de Assis

Aos seis, sete anos, eu vi um cavalo, um cavalo de corrida.Senti então que não há ninguém mais nu do que certos cavalos."
Toda Nudez será Castigada- Nelson Rodrigues


Estão Garcia, Fortunato e Maria Luísa imóveis na sala. O primeiro, desatento e quieto no sofá; o segundo de frente para a janela; a última contemplando os outros sem se dar conta da gravidade da situação. Sofre. A questão é: Garcia está pelado.

Voltemos para o início dessa complexa rede de relações a fim de tentar entender o que se passa naquela sala de um subúrbio carioca.

Garcia estava para se formar médico, quando um dia, embriago, tombou em frente a um ponto de ônibus e adormeceu. Acordou vomitado e no caminho de casa passou por uma estranha figura que ao sentir seu cheiro abriu os pulmões, sorriu e não se conteve. “Que belo dia!”, disse.
Alguns dias depois, na porta de um bar, viu passar a mesma estranha figura amparando um homem de muletas.

Ele caiu, dizia sorrindo.
Obrigado pela ajuda, dizia o manco.

Pouco tempo depois, a figura reapareceu com a roupa suja de sangue. Entrou no bar, pediu uma bebida e olhou inquieto e pesquisador para os lados.

Fortunato, disse se aproximando de Garcia.
Garcia, disse se apresentando à Fortunato.

Beberam juntos. Fortunato conversava desenvoltamente. Era um homem culto, citou até uma foto de Fernando Pessoa onde o poeta aparece em um bar e logo abaixo a dedicatória: “Fernando Pessoa em flagrante de litro.” Riram. Garcia perguntou do manco e Fortunato mal parecia se lembrar do caso.

Não lembrariam de mais nada. Acordaram na mesma cama, pelados e de banho tomado. Estavam na casa de Fortunato e só perceberam depois que entrou Maria Luísa no quarto.

Minha esposa, disse Fortunato.

Garcia, constrangido, se calou, pensando na estranheza daquela cena e na exposição de seu corpo perante a esposa de um semi-desconhecido: “Ela me viu pelado, o que será que achou?”
Maria Luísa trouxe o café da manhã. Os dois comeram, se vestiram e Garcia foi embora, prometendo voltar com um presente de desculpas. O casal agradeceu.

Na semana seguinte, Garcia voltou à casa trazendo consigo três entradas para o teatro, um ramo de flores e um whisky. Dirigiu-se até a porta dos fundos, por onde saíra no outro dia. Da janela viu Maria Luisa pelada. A moça se assustou, tampando-se, mas logo sorriu e mexeu a boca dizendo algo que ele não percebeu. “Estamos quites, deve ser”, imaginou Garcia.
Manso a manso, entrou-lhe o sexo no coração. Garcia correu até a cozinha e perguntou por Fortunato.

Está matando um rato no laboratório, disse Maria Luísa.
Então não demora.
Que nada, ele mata bem devagar.
Mas é um rato, não um elefante.
É que meu marido é milimétrico ao matar.
Que bom, eu não gosto de ratos.
Nem eu.

Fortunato entrou na cozinha à procura de um copo d´água. Viu um vulto passar em direção à sala. Seguiu. Encontrou Garcia completamente pelado e Maria Luisa normal, vestida, com uma bandeja de café na mão.

O que se passa aqui?, perguntou Fortunato.

Um silêncio se fez. Estamos de volta exatamente no início de nossa narrativa. Fortunato na janela, Garcia pelado no sofá e Maria Luísa, atônita, sem entender, de pé.

Hahaha! Você só entra na minha casa pelado?, disse Fortunato sem se virar.
Acontece, acontece.
Dessa vez qual a sua explicação?
Eu...eu..., Maria Luísa tenta se explicar.
Silêncio. Quero ouvir o que o quase Dr. Garcia tem a dizer.
Vinha trazendo esses presentes: as entradas para o teatro, um ramo de flores e um whisky quando...

Durante a narrativa de Garcia, Fortunato foi tirando uma a uma suas peças de roupa. Ouve atentamente, mas sem se importar com as palavras que por ali passam. “Ele não sente nada”, pensa Garcia, nervoso, suado. Quando o amigo termina, Fortunato completamente pelado se aproxima.

Levante-se.
Como?
Levante-se agora.

Com os dois em pé se pode ver como Fortunato é maior que o outro. Tem os ombros maiores, as costas mais largas, as pernas mais grossas. Em um gesto brusco, Fortunato levanta os braços, Garcia ameaça se defender, mas ganha um abraço do amigo.

A partir de agora, você só entra aqui em casa pelado. É uma ordem. E assim que eu o vir, também vou tirar a roupa. Não podemos mais nos ver de outra forma, combinado?
Garcia retribui o abraço, meio de lado, com medo de que seus membros se toquem. Está acuado pela grandeza do outro, mas também pela inusitada decisão que acabou de tomar. Não pode negar um trato sob tais circunstâncias.

Fortunato abre o whisky, serve dois copos e pede para Maria Luísa buscar gelo. Quando ficam sós, ele chama Garcia e tira de uma gaveta uma foto. É a de Fernando Pessoa no bar. Riram.
Imagina ele pelado, diz Fortunato.

Prefiro não, diz Garcia.

Embriagam-se. Dessa vez, Garcia não dorme lá. Vai por volta de duas da manhã bastante alterado. Sai pela porta dos fundos e na escuridão desaparece. Nunca mais voltaria àquela casa.
Assim que Fortunato dormiu, Maria Luísa voltou à cozinha, olhou em volta e sem qualquer fragmento de sentimento, saiu pela porta dos fundo. Na escuridão, sem levar absolutamente, desapareceu. Nunca mais voltaria àquela casa.

Na manhã seguinte, um pouco antes dos primeiros raios da aurora, Fortunato acordou e viu a cama vazia. Desceu e nem ao mesmo tentou entender. Saiu pela porta dos fundos e, aos primeiros raios de sol, desapareceu. Nunca mais voltaria àquela casa.

A casa, agora vazia, permanece lá e há um silêncio tão grande atravessando os cômodos, as portas, os objetos, que parece que nunca mais nenhuma palavra, nenhum som sairá daquele lugar.

28/04/2011

17 julho 2011

Domingo de manhã

Virou mania. Eu sei é chato, mas é mania, me desculpem. Preciso falar de algumas horas do dia pra poder entender esse cotidiano absolutamente descolorido. Domingo de manhã tem duas opções: ou você está de ressaca e acorda podre, com a cabeça explodindo, o estômago com um vulcão dentro, com a luz ofuscando qualquer rastro de entendimento e assim será parte do seu domingo, ou você acorda razoalmente cedo, mesmo que bem mais tarde que os outros dias e olha para a janela, as montanhas ou a praia, o céu azul ou branco, e se reiventa, pensando que hoje é um dia de descanso.
A sensação dura até o almoço ou até você ligar a televisão pra ver fórmula 1, volei de praia ou futebol de salão.
Domingo de manhã não é nada. Absolutamente irrelevante. Se possível, mantenham-se dormindo até o meio-dia.

16 julho 2011

as sensações racionais do dia 13

Esse texto é pretencioso, porque leva em conta o fato de que vou morrer bem velho. Resolvi escrever agora para que lá no futuro eu volte aqui e lembre do que senti ao receber a nota mais importante da minha vida.
É uma mistura de surpresa com certeza. Eu fiz por onde, eu corri atrás, passei dias lendo texto geniais de pessoas sofridas, às vezes suicidas, que pensaram a dor do mundo, ou mais, pensaram o porquê da dor do mundo. Fiz por onde e entendi, senti junto com esses caras, e fui pra aula sozinho, tentar entender como aquilo se desdobra na vida cotidiana das pessoas.
A emoção é bastante grande e não consigo traduzi-la e, logo depois, meu superego salta, dizendo: "como você vai ficar feliz sendo que você escreveu sobre um autor que sofre? Um autor que pensa o mundo dizendo que a infância é medonha e que não vamos encontrar maneira de nos relacionarmos e seremos adultos errantes e que vivemos em um grande teatro mal assombrado onde interpretamos uma má dramaturgia sem final feliz? É esse meu tema e como posso comemorar isso? Devo, mas não posso.
Aí vem uma coisa ruim. Me senti um nazista que não vê o sofrimento, que torna a vida uma estatística e, racionalmente, é cruel com os corpos. A verdade é que a sensação boa vem de redimir o autor que sofre o mundo, dizendo: "olha rapaz, te li, te entendi, compartilhei e quis saber mais desse teu mundo" e depois dizer: "o meu mundo é o teu e ninguém ou muito pouca gente vai chegar até ele" e depois: "pouca gente vai chegar até ele, mas todo mundo sofre esse teu mundo."
Uma voz agora me diz: "Existe deus pra isso, pra confortar". E sério, há algum conforto nisso tudo que eu disse? Apelar a deus depois disso tudo seria uma atitude covarde e de falta de caráter da minha parte: entender o problema, ir fundo e entregar pra deus.
É essa minha sensação, Luiz velho e chato. É essa. E no meio da confusão, te digo, é uma sensação muito boa, até quando ruim. Pode abrir uma cerveja aí, camarada, porque mesmo depois de tanta ressaca, eu sei que depois disso você vai precisar beber...

09 julho 2011

os cus de judas



Acabei de ler Os cus de Judas. Digo que não gosto de narrativas a partir de fluxos de consciência, nem da associação caótica de idéias. Sinto-me geralmente que se entrega ao acaso a criação artística, algo que, pra mim, precisa de uma mão forte e um alto investimento de controle da mão do autor.
Lobo Antunes é obviamente um homem que domina a linguagem poética, mas pra mim, esbarra às vezes nas imagens óbvias, na tentativa desesperada de poetizar tudo. O contraste entre linguagem poética e experiência seca é interessante, mas em alguns momentos resulta em palavrórios que não rumam a lugar nenhum.
A constante repetição de termos e imagens em determinado momento me cansou e, a partir daí, me tornei blindado às experiências que ele queria transmitir. Seu pênis ficava duro em cada capítulo e se pensava em mijar, cagar e em sangue, assim como em pedaços de feridos e copos de whisky. É o clichê da experiência poética da guerra. Há quem diga: "mas ele fala examente disso, da banalização da mutilação e da morte." Eu digo que a banalização só pode vir com a linguagem banal, que a linguagem poética eleva o acidente, dando-lhe tonalidades heróicas.
Enfim, é um livro interessante de ser lido, mas não é algo que me venha a encher os olhos...

sensível

O artista pra lá, o artista pra cá. Muito se fala do artista, muita gente se considera artista sem o ser e muita gente o é sem ao menos fazer arte. Não quero entrar nesses méritos nem analisar as sutilezas da questão. Meu ponto é pequeno, quase não cabe em um texto: o artista não pode ser sentimental.
A sentimentalidade sobrevoa a pessoa, passa por cima dela e fica por ali vagando, sem deixar que se olhe o mundo com a frieza necessária para se fazer arte. Há quem diga que arte é transbordamento, é deixar a mão fluir no que ela quiser fazer. Isso pra mim pode gerar grandes obras, mas nunca grandes artistas. O grande artista pensa sua arte. Pollock deixava a tinta cair, mas pensava sobre sua técnica e seu fazer, entendia que a performance era parte da pintura. Deixava-se ir no seu plano, no seu fazer artístico.
A diferença é que o artista tem que ter sensibilidade, ou seja, ser disponível à empatia entre ele e o mundo, entre ele e os outros. É ser afetado sem afetação, se deixar tocar sem se deixar mergulhar. Quando alguém te conta uma desgraça e você sente junto é um sentimental. O sensível é aquele que diz: "não me conta, o meu dia depende disso". A sensibilidade passa por algo de racional, por isso que o artista precisa estudar, pra ver o mundo de outras formas, de mais maneiras, ou seja, precisa enriquecer a experiência e tornar o cotidiano mais denso, assim a sensibilidade tem campo e o sentimentalismo é só escorreção de palavras que parecem profundas, mas são ocas.
Brecht era um sensível, não um sentimental. Assim vai a lista: Eça, Pessoa, Machado, Rosa, Calvino, Saramago, Kafka, Camus, entre outros. Quem mais?
Pense nisso, às vezes...

06 julho 2011

teus olhos

por que teus olhos escuros
castanhos escuros
ao chorar clareiam
como o céu
e despejam as águas
quase azuis
do mar?

03 julho 2011

se levar a sério

Uma das maiores virtudes que alguém pode ter é jamais se levar a sério. Quem se leva a sério está a um passo de ser tonto, porque o que a fluidez da vida impede que qualquer tipo de forma se estabeleça. Não se levar a sério, no entanto, não é não levar nada a sério, pelo contrário, é discutir até o fim qualquer questão pequena, boba que seja, lutar com todas as forças, mas saber que nada disso é realmente tão sério.
Por favor, que ninguém leia: "o caminho é importante, não o fim". Não digo isso, não vou até lá, porque os fins são tão importantes quanto os meios, mas não tanto quanto os inícios. O que seria da vida sem os inícios? Não se levar a sério, e isso é importante, é pensar: "nossa, a vida é uma merda", e isso não ser um grande dilema. É, talvez, um fato e com fatos não se discute e por isso não se deve levar a sério o fato. Isso deixa margem para se pensar que, não importa tanto o fim, mas o que se está fazendo e eu vou concordar, mas dando minha condição: o fim é a morte. Nela nada faz sentido mesmo, é puft, fim do mundo, tipo esse texto que eu estou escrevendo, agora você estou lendo e agora você não está mais porque...

30 junho 2011

as más idéias

Tem horas que me vem uma frase na cabeça e eu penso: "genial, vou escrever sobre isso." No caminho até o computador a frase se vai, o pensamento também, fica só aquela vontade, aquela sensação de que alguma coisa eu pensei em dizer. Ainda bem que eu não me importo com as boas idéias...já com as más...

28 junho 2011

às duas

Uma sensação intraduzível, e não uso a palavra sentimento porque os sentimentos são falhos, frouxos, se esticam para lá e para cá sem qualquer razão, é a sensação das duas da manhã. Se eu pudesse dar um conselho à qualquer pessoa não seria ver o nascer ou o pôr-do-sol, dado o fato de que a natureza nos engana o pensamento, mas sim, deixar-se em casa sem pronunciar qualquer palavra a ver a noite chegar e depois a madrugada, até às duas da manhã. Se ao ponto nada acontecer, duvide de sua humanidade.
Às duas chega uma sensação que diria eu ser de mundo. Deixar-se ao tempo, à noite, mas não muito como às 4 da manhã, quase ao amanhecer, nem tão cedo à meia noite quando a maioria ainda descansa do cansativo dia.
Duas da manhã está entre lá e cá e forma uma espécie de zona de fronteira da madrugada. Tudo faz sofrer e nada é sofrimento. Tornamo-nos distantes das coisas, da realidade e vem-nos uma pulsão de vida. Nada quente, uma pulsão de vida como tomar um copo d´água ou ouvir uma história dos avós.
Todo os dias, às duas da manhã, tenho vontade de olhar para o céu e perguntar: "amigo, há quanto tempo estás por aí?"

25 junho 2011

Ponto Fraco



Texto do programa de Ponto Fraco, prática de montagem da UNIRIO, com direção de Leandro Romano e dramaturgia de Luiz Antonio Ribeiro:


Há um ponto. Todo mundo sabe disso. Sem o ponto não há nada a fazer, não há onde ir e é até impossível se mexer. O ponto serve, no mínimo, pra que a gente se equilibre sobre ele. Sem o ponto a folha está em branco, completamente vazia. A cena, sem o ponto, fica muda. O ônibus sem o ponto vai errar como nômade pelos espaços da cidade. O ponto existe e a gente sabe como é ativado. Sabe como ele é frágil, tímido e se nega a aparecer. O ponto é esquivo, arisco, é quase que uma entidade espiritual que só aparece quando quer ou então quando se chafurda, se lança e se humilha perante ele.
No entanto nosso objetivo não é esse. É que as atrizes, o diretor, o dramaturgo, o cenógrafo, o iluminador e o figurinista sabem do esforço que é lidar com o ponto. Há uma tendência a, antes de tudo, encontrar o ponto. E, escolhido aleatoriamente, o ponto vira quase uma estrela, o ponto é como um guia para cegos e nós, cegos, nos atiramos ao ponto.
Nós, no entanto, somos cegos sem guia. Estamos largados e nada sabemos do ponto. É claro que ele é importante, ele dita os caminhos, mas se o ponto não está lá, estará o caminho?
A partir dessas narrativas pontuais, mas também, sem pontos é que lidamos com a cena. Estamos no caminho certo, à procura do ponto perfeito, porque sabemos que ele está bem na nossa cara, se esfregando, na ponta da língua. O ponto, em fila pequena, é reticência. Em fila grande é pontilhado. O ponto é tudo que se fala dele, é tudo que se escreve no pontilhado e tem reticências no fim.
É o ponto...que é fraco.

17 junho 2011

solidão

Faz muito tempo que aprendi a solidão. Acho que todos aprendemos mais ou menos na mesma época, ali por volta de seis, sete anos, quando nossa mãe nos esquece por um momento ou a professora da escola diz que você está errado. É uma sensação tão forte que marca e qualquer outra solidão, depois dessa, parece que repete-a.

Depois resolvi aprende sobre a solidão. Sabe quando dizem: “você tem que estar preparado para o que vem.”? Geralmente dizem isso pra coisas simples, tipo levar um guarda-chuva e casaco pra não pegar gripe, comer verduras pra estar com o organismo forte, arrumar as malas porque a carona pode chegar antes, no entanto, essa questão, pelo menos em mim, vai além. Estar preparado para o que vem é apontar do momento em que se está até o dia da nossa morte tudo aquilo que é passível de acontecer e, aos poucos, preparar-se para todas as ocasiões.

A primeira delas é simples, a morte de nossos avós. A ordem natural é que eles morram primeiro que a gente, então é preciso o mais cedo possível se preparar para esse acontecimento. Isso quer dizer, fazer todos os carinhos que estamos devendo, comprar um presente pra eles e perguntar toda a história de suas vidas e de nossa família, pra que no futuro possamos contar pros que vem aquilo que ouvimos. Isso também inclui comer muito feijão, bolinho de batata sem salsinha, sentir o cheiro da vó que faz crochê como ninguém apesar de não saber contar. Estar pronto é um pouco de sentir saudades antecipadamente e, justamente por isso e um pouco trágico, é preciso também um pouquinho de distância deles. Não é frieza, nunca. É distância, é preciso que não dependamos deles pra nada, que toda nossa relação seja simplesmente afetiva, sem qualquer dependência sua pra eles.

A segunda é, óbvio, se preparar pra morte de nossos pais. É a ordem natural e talvez a coisa mais difícil de se fazer. A lógica é complicada e até hoje tenho dificuldade de equilibrar, porque, em via de regra, é fazer o mesmo que fazemos com os avós, só que com muitas mais dificuldades, porque os pais são os seres do amor, da gênesis. Não somos igual deus que abandona Adão e Eva com facilidade, nós amamos. É até complicado tratar disso em um texto, acho que não tenho essa força ainda. Pulo.

Por fim, é estar pronto pra todas as vicitudes do mundo. Todas as porradas que você vai levar, todos os desagradados que vai ter de passar, todos as ofensas, falta de respeito, puxada de tapete, soco na cara, ressaca. É preciso estar preparado pra tudo isso.

Aliás, a ressaca é um belo exemplo. Preparar-se pra ressaca é preparar-se pra vida. Sabe-se que ela vem no dia seguinte, então o dia de beber é escolhido a dedo, todo o ritual pra amenizar é seguido e um certo controle mental antes e depois que permita o descontrole do momento. O fato é: o mundo é perigoso, vai ofender e é preciso estar pronto.

Depois vem a saúde. Ela é a primeira a cobrar. É engraçado ver como as nutricionistas falam em evitar gordura, hormônios, carboidratos, açúcar. O dia que uma não morrer e viver saudável pra sempre, eu juro que sigo as instruções, mas enquanto elas se forem com a mesma idade que minha vó da roça que comia fritura na banha de porco, nada feito. Preparar-se pra ter problemas de saúde é saber quais seus pontos fracos, onde que rebate os problemas no nosso organismo e, tudo que vier dali, não ser surpresa.

Acho que agora é o mais importante. A solidão pela solidão. Estar preparado para a solidão é aprender a estar sozinho. Dizia Baudelaire: Quem não aguenta a solidão do seu quarto, nunca vai aguentar uma grande cidade. A solidão é aprender a ler trechos de livros enquanto caminha pela casa, é não esperar que a TV complete o vazio dentro de você, é saber que por mais que você estude, trabalhe, é absolutamente inútil e serve apenas pra dar dinheiro pra você gastar com coisas que você não vai querer pra sempre. Aprender a ser solitário é se olhar nu, mas uma nudez suja, daquela que não toma banho ou que não arruma a casa. Uma nudez que você só permite a você mesmo e mesmo assim se envergonha. Quem fica sozinho em casa e toma banho, usa maquiagem e troca de roupa, nunca vai entender de solidão. Essa solidão nua é a mais difícil e muita gente tenta completar com amigos, amores, festas, mas eu prefiro não. Prefiro encarar a solidão de minha casa comigo mesmo e cada vez mais aperfeiçoar esse talento de não estar, de não ser presente. A saída é aprender a não-ser. A necessidade de ser o tempo todo, de estar limpo, inteligente, sagaz, engraçado, perspicaz e disponível acaba com qualquer individualidade e inteligência. O que é preciso é não-ser, deixar a ignorância passar, perceber as redes sociais como o lugar onde os outros caçam...peixes. Os amigos, em alguns momentos, completam esse buraco do não-ser, mas eles, e isso é um desejo meu, também vão conseguir não ser, justamente por isso, não posso depender deles, seria cruel demais.

A solidão nua, a solidão suja, a solidão da louça não lavada e da roupa jogada é o desafio. Essa solidão de que se abre mão de quase tudo que existe pra ficar ali, no cantinho da cama, pequeno, quase não existindo, controlando até a respiração e o movimento das pernas. É ouvir música em fone de ouvido mesmo estando sozinho. É pegar um papel pra escrever uma carta e deixar ali, na mesa, com o lápis do lado por horas e horas. É preparar um prato de comida sem esquenta-la, deixar esperando no micro-ondas, é abrir uma caixão de bombom e não comer. É olhar pra isso tudo com a maior complacência e sentir no fundo, não dizendo: “fica pra depois.”

A solidão não corta e não mata. Não existe nenhum sofrimento que vem da solidão. O maior sofrimento vem do outro lado, vem da porta pra fora. Aqui dentro, enquanto houver eu-não-sendo, vai ser o melhor lugar do mundo e o único que eu posso estar.

16 junho 2011

formigas 2



as formigas parecem que me leram
talvez o tenham feito.
andam, agora, pra lá e pra cá
desconexas, sem qualquer linha
reta ou torta.

e eu pensando:
"pra onde elas estão indo?
meus deus,
porque elas andam?"

é que eu não entendia, até então,
que elas andam pra comer
e eu como pra andar...

14 junho 2011

formigas


No azulejo do banheiro as formigas caminham em linha e formam uma fila que só para fora do olhar.

"Meu deus", penso eu,
"que linha torta!"

Depois pensei que se elas aprendessem a reta criariam trilhas, caminhos, estradas e, por fim, a fome do engarrafamento.

12 junho 2011

doze

Há de ser muito filósofo pra se falar do sublime. E o amor, o sentimento mais sublime de tudo que há, está no oposto da filosofia. O amor é a anti-filosofia, como verruga em morto, é anti-natural e por conta disso, aquilo que há de mais forte. Por isso que, digo hoje, meu amor é maior até que a natureza, que o cosmos, porque eu sou a redução de tudo que existe. Amor hoje, doze de junho, sou eu.

08 junho 2011

rebelde

Quando ouvia ainda criança a palavra "rebelde" me vinha uma estranha sensação. Tinha uma breve repulsa por aquele que era rebelde, porque era alguém que a família não gostava, que os amigos tinham medo, que não conseguia se misturar e era sempre mal visto. Ao mesmo tempo via o rebelde como alguém duro, que precisava mais que de ordem, de atenção. O rebelde era, na minha visão, um ser que ainda não foi domado e que por isso fazia o que fazia.
De qualquer maneira e isso é o que importa, o rebelde era alguém que impunha respeito. Rebelde era, pra mim, alguém que podia fazer alguma coisa inesperada, completamente fora da regra e isso era assustador.
Hoje em dia vejo a rebeldia como a única saída do mundo.

dicas:

1 - É preciso não fazer o que esperam de você.
2- É preciso que, ao romper os padrões, faça com sutileza mesmo que se arrombe a porta, porque o gesto já é claro por si só, não precisa de pomba nem de avisos.
3- É preciso inverter a lógica: o que é bom necessariamente precisa ser ruim e o que é ruim torna-se prioridade.
4- A tradição nada mais é que objeto de apropriação e escárnio. O que vem do passado serve apenas como ponto de partida de referências do que é velho. O rebelde precisa ser novo.
5- É preciso ser chato. É impossível ser rebelde e ao mesmo tempo agradar. Na vontade de ultrapassar as barreiras, o contentamento seu ou do outro é ponto cômodo que leva ao sucesso, e um rebelde nunca sucederá.
6- A família para o rebelde é cobaia. Não que ele não ame, mas antes de amar, ele precisa fazer que o amor seja livre, nunca parte do protocolo existencial genético social.
7 - O rebelde não pode ser dialético porque ele não faz síntese. Ele não trabalha em opostos nem com oposições. Ele ri das duas, ultrapassa-as com uma ironia ou um golpe de humor inteligente e as dissolve em instantes. Um rebelde, por exemplo, nunca pode ser um comunista.
8 - Não é possível ser culto na rebeldia. O excesso de cultura é tradicional em demasia e, por conta disso, é conservador. A inteligência dele está em reverenciar os mestres sem seguir seus exemplos, porque, na verdade, os mestres são homens que se deve admirar, nunca seguir.
9- É preciso não ter religião. Só.
10 - É preciso nunca saber/pensar/usar a palavra produto. Nada é produto porque nada é apropriável, nada tem duração, nada tem tempo de maturação. Tudo é instantâneo, urgente e grave.

O rebelde é esse e mais não falo.

23 maio 2011

minha eterra

minha terra tem palmeiras
mas eu gosto do flamengo
e foda-se o sabiá

poemeto das 5:55

quero escrever um poema de amor
mas tenho sono
mas tenho amor
mas tenho sono
mas tenho amor
e não quero que meu poema seja de sono
só de amor.

no fim,
escrevo um poema
(com sono)
de amor

pra dizer que vou dormir
e em sonho pretendo encontrar meu amor
e acordar bem
sem sono
(e com amor)

18 maio 2011

dezenove de abril


No dia da Bandeira
a homenagem devia ser pra outro
o menor de tamanho
de tempo, de vida
e até de conhecimento


No dia da Bandeira
o que importa é o outro
que de menos faz mais
que retângulo, losango e círculo

Imagino o outro Bandeira
pendurado no mastro
doce, sorridente, singelo
lá de cima dizendo:

"Vamos descer,
interromper o cortejo
e tomar um café?"

o telefone

meu telefone toca antes de eu entrar em casa.
é um sinal,
um toque,
um aviso de que eu chego agora?
ou um aviso de que devo entrar,
mas não esquecer lá de fora?

04 maio 2011

se um dia

se um dia eu escrever uma poesia
triste, poesia de despedida
sei do que ela vai precisar:
um final pequeno, curto
triunfante como um exército,
e pequeno.

seria assim, já sei:
"faltou amar como eu te amo"

03 maio 2011

pra ela dois

O amor é uma questão de visão. Acontece que às vezes nosso olhar está fraco, turvo, como se estívessemos em uma intensa neblina ou, de repente, ficamos míopes. Só que o amor, maior em todas as dimensões que qualquer tempestade, vai sempre além. Ele vaga por cima das nuvens, sonha com outras tempestades - uma chuva de verão, por exemplo, - pois ele está armado para viver etéreo, em um espaço vivo da eternidade. O amor é como um zumbi, morto-vivo; viverá eternamente em uma semi-vida, e semi-vida porque semi-consciente, semi-racional.
Vou tentando atabalhoadamente dizer as coisas e elas vão saindo, palavra por palavra, até que eu entenda bem o que tento dizer até pra mim mesmo. É isso:
Antes de amar a gente ama, porque ele é a força inicial da natureza. E é nessas horas que não consigo deixar de pensar como você está agora. Se deitada, se dormindo, se pensando, se falando ou sorrindo. É, não importa a imagem que tenha de ti. É ela, só ela e mais nada que hoje vai me fazer dormir feliz.
Sou eu e sou tu. Eu é tu.

26 abril 2011

atravessar a rua

Por medo, atravessei a rua. Que fique claro que não atravessei a rua com medo. Estava austero, empinado, tal qual galo de briga, com o famoso peito de pombo ereto, mas atravessei...por medo.
Não si se faz diferença o “por medo” ou “com medo”, mas internamente, amigo, faz. Por exemplo, há um mendigo na esquina vindo em sua direção. Você não sente medo algum, mas atravessa a rua por medo. É quase como se o medo fosse conceitual, ao contrário do medo físico, iminente. O medo desvia da morte, mas também celebra a vida.
Atravessei a rua, então, por medo. Nesse momento havia somente eu, a rua e o medo, junto com minha ação de atravessar. Eu precisava acrescentar alguma coisa para fugir desse sentimento, então resolvi parar no meio da rua. Inteferir na vida, interromper o mundo. Não quis nem avisar aos outros o que faria. Odeio suicidas que escrevem cartas. O sujeito se mata e ainda deixa rabo, deixa rastro. Se mata e ainda chateia os outros, mais que o protocolo de enterros, velórios, funerais, missas, lágrimas. Se eu morresse agora, pensei, seria uma chateação, mas já não posso voltar atrás para a calçada por conta do medo e não posso ficar na rua para não ser chato. Resta-me o outro lado, então vou.
Agora que saí do trânsito, percebi que a rua estava deserta e interrompi apenas um carro que acabara de sair da garagem. O carro abre o vidro: “Tudo bem, vizinho?” “Tô bem, tô bem.”, e ele vai. A garagem ainda permanece aberta. Entrei.