30 agosto 2009

reflexões

Tenho a sensação de que apodreço. Que cada dia que passa sou uma versão mais gasta de mim. Falo fisicamente, caminho pra degeneração inevitável, homeopática e fulminante. Escrever se torna então em última instância a vã tentativa de capturar uns instante em que algo de outra ordem, que não a material, se instala nesse corpo que apodrece e, assim, ler depois o que escrevi é perceber o momento anterior ao de agora em dois níveis: a lembrança da sensação física e a profundidade do pensamento. O fervilhar de idéias é tão grande que em dois minutos posso escrever triste e feliz, falar da dor de um sofrimento e de um entusiasmo. A questão é saber o que eu vou querer ler depois de mim e essa pergunta nem sempre pode ser respondida, porque o que quero ler de mim, geralmente é o que deveria ter escapado, mas se eternizou. Assim a matéria viva de mim revela um ponto que ainda é obscuro, que ainda não decifrei, entretanto, no geral, o que sinto é sempre um enorme prazer de perceber que a vida é boa demais, é engraçada, é estranha e sofrida, mas inevitavelmente contagiante. Apodrecer é bom.

23 agosto 2009

sonho

Tive um sonho sensacional, tenho que me esforçar pra conta-lo. De alguma maneira, eu estava sendo acusado de engravidar uma menina. Estava em casa, na varanda, andava pelo quintal esperando alguma reunião que teria e, na verdade, eu já havia me contentado com o fato de que eu ia ser pai e o mais interessante,e u não sabia qual menina era e pra mim a grande descoberta seria essa. Depois lembro que estava havendo uma reunião na casa da minha tia, com minha mãe, a mãe da menina, o bebê meu filho e eu ficava lá fora esperando uma hora pra me chamarem. Era parecido com algum desses programas tipo Ratinho, eu via o q acontecia lá dentro como se fosse numa televisão. Quando me chamam eu olho para a menina e não a reconheço, então digo: "nunca tive nenhum tipo de relação com essa menina." A mãe dela começa a chorar, a menina diz: "é verdade, é verdade, eu acusei ele injustamente" e também começa a chorar. Ela é linda, ruiva com sardas, do jeito que eu gosto. Está com o bebê no colo. A reunião acaba e ela sai sozinha, triste e eu vou atrás conversar com ela. Sentamos num canto aqui do quintal e eu fico perguntando sobre as coisas da vida dela e ela vai me contando devagar, frágil, triste. Deixa eu olhar para o bebê e ele é lindo, me arrependo de não ter aceitado ficar com ele e com ela. Passamos o resto da tarde conversando, ela diz que queria ficar comigo. Eu não queria ficar com ela, mas estava feliz por ter uma companhia. Alguma música está tocando no fundo, mas não reconheço qual. O sonho acaba quando por algum motivo ela precisa ir, se levanta e desce com o neném. Eu fico parado no mesmo lugar, sem me mexer, agora triste. Não lembro de mais nada.

20 agosto 2009

meu vizinho

Tinha como visão da janela do apartamento, uma outra janela de apartamento, como seu aquele fosse um prolongamento desse e as janelas, a minha e a dele, se tornassem molduras distantes, separadas pelo vão que se deflagrava do quinto andar até o térreo. A verdade é que não sei direito como se chamam as coisas em apartamentos, porque sempre morei em casa. Esse vão me lembra imagens de cortiço, ou melhor, imagens que criei de cortiços ao ler livros de literatura brasileira, enquanto que térreo sempre me parece nome de lugar que fica embaixo quando tem algum lugar em cima. Assim sendo, a rua até poderia ser o térreo do céu, penso eu.
A impressão que tenho é que o apartamento dele é uma espécie de espelho do meu, o armário, de modelo e cor diferentes, fica exatamente no mesmo lugar, assim como o banheiro, a estante, a televisão. Tenho a impressão que a vida dele segue análoga à minha. Análoga mas não idêntica, porque ele apaga as luzes pra dormir cedo e quanto acordo, ele já saiu, porque quando ele chega pra almoçar, estou quase me arrumando pra aula. Ele trabalha e eu estudo, nos encontramos em frente às nossas televisões sempre na hora do flamengo e quando acontece um gol sorrimos um para o outro da janela.
Conforme vão passando nossos dias, morando tão perto, vivendo tão próximos, nas mesmas condições e ao mesmo tempo tão distantes, percebo como somos os mesmos, e percebo mais: todos somos sempre os mesmos o tempo inteiro, fazendo as mesmas coisas. Repetindo os passos e as frases, as siglas, as reclamações, os ciúmes e as saudades. Os casados repetem os tédios, os solteiros os porres, as rezas ou as punhetas. As solteiras ficam mais fáceis e sensíveis. No fim, todo mundo é fácil, sensível, enche a cara, vê o flamengo, reza...no fim, meu vizinho serve pra que eu veja o mundo...no fim, o mundo é o lugar onde tudo acontece da mesma maneira e dar um passo atrás é perder o bonde mas prever o mundo...no fim, perder o bonde é quase ser diferente, mas é encontrar tanta gente que perdeu junto com você...no fim, há sempre um fim e um recomeço...no fim, eu recomeço...

17 agosto 2009

no aterro

Fui correr no aterro hoje. Já chegui lá com dor na perna e aguentei correr no máximo 3 minutos. Então aproveitei pra olhar ao meu redor e senti um misto de alegria e tristeza, prazer e decepção. Alegria porque vi como as pessoas são felizes nessa cidade, as bundas se sacodem em harmonia com a areia e a água do chuveiro, os passeios de bicicleta com filhos pequenos são libertadores e quase ouço a trilha sonora dos Ipods de quem caminha. Tristeza porque me parece que esse mundo não me pertence, tiro a camisa e sou branco demais, a barriga exuberante é de quem vive mais a noite que de dia. As bundas me fascinam, mas me parecem tão longe de mim e os passeios de bicicleta com filhos mais longe ainda. E pior, tenho medo de levar qualquer tipo de elemento sonoro pra lá com medo de ser assaltado.
Acontece que assim sendo estar ali não me dá tanto prazer, fico pensando que poderia estar num bar, com uma pessoa que eu amo, em qualquer lugar que fosse me sentir a vontade e confortável, mas nem sempre podemos ter o que queremos...Geralmente nem quero tanto, só gostaria de pertencer a mais lugares.

16 agosto 2009

pílulas

Tomou uma pílula e sentou no sofá. Era vitamina pra suprir o fato de não comer vegetais. Sentou pra suprir o fato de que as costas doíam e porque já ficara deitado o dia inteiro. A impressão que passava pra quem (não) lhe via, era de que assim estivera por muito tempo em sua vida, parecia um gesto já ensaiado e repetido por diversas vezes. Aliás, a impressão que se tem é que as coisas estão sendo sempre repetidas, recontadas, requentadas. “Vou ali e já volto” é um clichê pra ir embora e não querer demorar. Ninguém leva uma hora pra ir em nenhum lugar, leva sempre meia horinha, quize minutinhos. É uma sucessão de eufemismos que não amenizam nada, só tornam óbvio o que poderia ser normal. Por isso que stomar uma pílula e sentar no sofá é só a reprodução da mesma atividade de sempre e por isso que ele fazia tal atividade com tanto cansaço e com um olhar tão perdido: por mais que se esforçasse na vida, nunca faria nada de diferente, até acreditar nisso era óbvio. E não era triste, era só normal fazer o que se está fazendo sempre. Assim como alguém já fez.

13 agosto 2009

um sentimento

Às vezes eu fico procurando objetos para descrever um sentimento, como se, na sua forma, a metáfora conseguisse esconder aquilo que sinto amorficamente. Por isso escrevo um conto cujo personagem principal é um anão, onde mostro uma sensação de fragilidade que me cerca; um outro sobre um homem q despenca na máquina de um matadouro, onde penso que, no fundo, quanto mais tempo sobreviver mais vou me aniquilando, ou seja, quanto mais me protejo, mais me afasto de mim; um outro num espaço quase todo em branco, onde eu valorizo cada pequeno gesto que recebo das pessoas, e os analiso e repasso na cabeça, tentando achar um valor ou uma verdade que nunca existe; e por fim, um onde as luzes da cidade se apagam todos os dias na mesma hora, onde peço ao mundo que participe da minha solidão.
É com essa conclusão que tento escrever agora e o problema disso é que perco um pouco da ingenuidade. Mas o sentimento que tenho para falar é tão bonito que vou ignorar o que eu acho do mundo, dos outros e da política, vou ignorar tudo o que existe, porque tudo que existe, existe para não existir, existe para que não existam.
O sentimento é sutil. É como um lençol: fino, aconchegante, acalentador, essencial. É como um sorriso: foge, escapa, vem e traz com ele uma coisa que nos faz esquecer que resto existe. É um sentimento cúmplice, como se ele tivesse assistido comigo um assassinado e fique de vigília, a noite inteira, deitado a beira da cama, esperando que algo aconteça. Ele me proteje. É como uma vela, um fósforo, um gol, a lembrança de um beijo, um curativo no joelho, uma flecha atirada, uma paixão por uma música, um pedaço de pizza, um telefonema de madrugada, um desencontro. Ele é como um amor, mas sem forma, um amor amorfo. Um amor-fo. É um sentimento tão caro e tão raro que ainda não encontrou matéria, mas resiste à tudo e vive tão escondido (e tão à mostra) que é bonito e patético, sem sentido mas cheio de histórias. É a história de um sentimento que resistiu á todas as metáforas, um sentimento que ainda não virou conto, não virou memória, não virou nada. Um sentimento que a gente preserva para sempre poder sentir.