27 abril 2006

vinte e quatro horas

"Não há porque voltar
Não penso em te seguir
Não quero mais a tua insensatez..."
Renato Russo

...aos poucos, junto com os primeiros raios de sol, ela foi se libertando do casulo. Aos poucos, a lagarta, que já era borboleta, ia se desfazendo de todo seu passado para um novo e breve futuro que se apresentava. Devagar, as asas foram se desprendendo do casulo, depois foi todo o pequeno e frágil corpo. Agora ela já era borboleta, mas não se movia, pois ser borboleta bastava. Agora ela era. O sonho de toda lagarta chegara.

Num silêncio da natureza, quase que mortal de tão nada silencioso, ela pela primeira vez mexe as asas. Foi um movimento de autoconhecimento. Apenas um chacoalhar. Porém, já mostrava suas cores: era linda, amarela, vermelha, com tons de marrom, mas não se podia precisar qualquer dominância entre as cores.

Depois de alguns minutos de sentir-se borboleta, ela movimenta-se de novo. Faz de uma maneira desajeitada, atabalhoada, mas segura. E quando menos se espera levanta vôo. Começa a conhecer tudo aquilo que sua intuição dizia existir, ou que então, algum descendente havia passado. Passeia por bosques, florestas, jardins, parques e folhagens. Passa por lindos lugares, experimentando essa sensação de voar, de observar o mundo e pela primeira vez, não ser observado. Sentia-se só, porém. Vivera sua vida só e agora que era linda, voava e tinha nela toda a maravilha da natureza, não podia permanecer assim. Alimenta-se e descansa em alguns lírios de um parque a hora do sol mais forte, e pouco depois sai em busca de companhia.

Nos bosques, encontra muitas borboletas, porém todas pareciam auto-suficientes e ignoravam seus apelos. Uma delas foge só de ouvi-la dizer: "você..." Descobre então, que não podia competir com aquele bosque, e vai-se para um parque. Lá encontra muita gente, correndo, andando de bicicleta, falando, gastando e comendo. Assusta-se com o tamanho da pessoa. Num canto, perto de um banco, vê um menino de calças curtas e camisa vermelha, sentado num banco com cara de choro. Aproxima-se, o posta-se ao lado dele. O menino olha, estica o dedo e a borboleta sobe em seu dedo. Ele olha para ela por alguns instantes e sorri, ela devolve-lhe o sorriso que ele não entende. Em instantes, ele tira o dedo e sai correndo em direção de alguns meninos. E a borboleta alça vôo de novo.

Num jardim, ela encontra apenas um beija-flor, que parece mal humorado e toma conta do local, ela tenta lhe dizer algumas palavras, mas ele parece nada sociável. Ela afasta-se e encosta próximo a alguns outros insetos. Todos excluídos. Havia ali, mosquitos, moscas e algumas mariposas, e ela a única borboleta, linda, sentindo-se só. Porém, os insetos incomodam-se com sua presença, e um a um voam para outro lugar e ela, tentando segui-los desiste e não vê para onde eles dirigem-se.

Anoitece, e a borboleta não está feliz. Nem triste. Está cansada. Sente um peso de uma vida que se tem e reclama de ter ganhado a vida que ganhou. Pois no fundo, ainda era lagarta, ainda era um ser como outro, ainda estava confusa. Não podia compreender essa metamorfose de nada a tudo, de feio a belo, não entendia ter que mudar por fora, quando a essência permanecia a mesma. Sem poder entender como era a vida de borboleta, ela enche-se de esperanças de poder descobrir isso nos próximos dias, já que estava borboleta a apenas algumas horas. Resolve então voltar para o casulo de onde saíra e lá, descansa. Dorme profundamente e ali fica para sempre. Mal sabia ela que borboletas só vivem vinte e quatro horas.

Luiz Antonio Ribeiro
01/07/05

07 abril 2006



Ela era a mais bonita da família. "Levem ela pra ser modelo", dizia uma tia velha insistente. Nada causava efeito até que a menina ganha o concurso de "Garota primavera" na escola. Disseram que ela possui talento, e a mãe resolveu, então, leva-la numa agência. "Claro." disse um olheiro olhudo, com as pupilas dilatadas, vendo dinheiro em seu futuro. A menina fez logo um book, e em pouco tempo já trabalhava para as principais empresas, ganhava um tanto de dinheiro que o olheiro deixava sobrar para ela, era cobiçava por muitos velhos tarados e invejada por alguns estilistas gays.

Fama, dinheiro, sucesso, beleza. Opa! O que todo mundo quer. Mas a menina não pediu nada, não perguntou nada e ninguém nunca chegou a se importar com o que ela pensava.

No entanto, ela continua andando e seguindo. Para onde? Para lá.

01 abril 2006



Não é por minhas mãos sujas de cansaço que me sinto abandonado. Não é por causa de minhas unhas sujas e roídas seguidamente, após crescerem insistentemente marcando o tempo que se esvai, que as vezes tenho impulsos de rebeldia. Não é por essas roupas velhas e por esse capacete que me esconde a cabeça e a inteligência que me sinto impelido a largar tudo e abraçar o inimigo. Nem é a saudade que quase sempre a noite me acorda do meu meio sono confuso que me faz pensar em desistir de tudo. Muito menos é por esse rifle, que em minhas mãos já causaram dor, mas que em minha companhia, já se fundiu em mim, criando um laço quase afetivo, que me lanço assim ao destino. De todas as dores, insistências, cansaços, sujeiras, descasos, mortes, infelicidades e saudades, o que mais me faz chegar no real sentido de onde eu posso estar é esse meu olhar.

Olhar que há muito já se foi, já não está em mim, já não reflete aquilo que sou, nem mesmo a radiante alegria de viver que tinha ao chegar aqui. "Defender a pátria" pensava eu. Um dia, talvez ele tenha visto que eu não defendo nada, apenas mato minha própria raça, a parte do mundo que é igual a mim. A gente não sabe construir uma coisa que está fora da gente.
Meu olhar, ou meu ex-olhar, perdeu o horizonte. Ele agora, vai solto, além dele mesmo, talvez viajando por campos, ranchos, bosques, parques, noites e dias. Não de paz, na minha utopia de vida, mas numa tranqüilidade serena de quem sabe que está vivo. Traze-lo de volta, talvez seja faze-lo sofrer um bocado mais, por isso ele se foi, e por isso eu deixei que ele se fosse. Ele já não dói.

À frente dele, uma trincheira que ele próprio não vê. Mas sei que ela existe, porque tenho a meu lado meus amigos. E por eles, meu pobre olhar enxerga. Meus companheiros de trabalho, de luta, ou cúmplices de nossos assassinatos contínuos em nome de alguma desconhecida paz. Ah, aventurado olhar que por perdido, ainda me mantém vivo.

Toca-se a trombeta, avisos de atenção. E em dois segundos estou a postos. Alinhamo-nos todos em fila, preparamos o ataque em alguém que em momento algum vai nos atacar. Sabedoria ou covardia? Já nem sei. Não fui trazido aqui para questionar. Corpo rígido, em forma. No lugar de um terço, aperto um pouco mais meu rifle, que torna-se quase sagrado, e sigo marchando. Entro num carro, me levam para outro lugar, onde em dois segundos começo a atirar. Levei um tiro? Isso é sangue? Caído estou, não tenho a noção exata, o barulho é alto e a correria também. Existe algum choro de criança por aqui talvez.

Não posso precisar nada, porque embora aqui esteja, meu olhar, que talvez seja minha alma, minha consciência, ou simplesmente uma parte minha perdida, já não está aqui. Sozinho, vaga por algum lugar bem melhor do que esse.