27 novembro 2010

os livros

Fico lendo o nome dos meus livros. Cada um diz tanta coisa que dá vontade de ficar pensando só no título. Exemplos: "rumo ao farol" da Woolf, ou "setembro não tem sentido" do João Ubaldo Ribeiro, ou "A montanha mágica" do Thomas Mann, ou Alguém que anda por aí" do Cortázar.
É tanto nome que diz tanto que às vezes penso que o ser humano é criador nato. Ele relaciona tudo a tudo e todos os nomes estão juntos num imenso cesto e vamos ligando-os tal como numa poesia dadaísta. Tanto que "Todos os Nomes" é um livro do Saramago, onde realmente todos os nomes estão lá, menos os das personagens. Excetua-se um: José, espécie de alterego ou não. "Vidas Secas", "Estorvo", "Sagarana", e os títulos nao param de dizer coisas e eu todos os dias vejos esses livros que também me vêem.
É em nome deles que eu escrevo. Um dia algum livro meu pode dizer alguma coisa. E hoje eu diria que...nós...somos demasiadamente violentos. Ô raça ruim essa dos humanos...e que coisas lindas eles escrevem.

18 novembro 2010

prefácio

Nunca escrevi uma peça, muito menos um prefácio pra uma peça minha. Coloquei Hours do Phillipe Glass pra ver se me inspira, mas acho que música instrumental não é muito pra mim, por isso prontamente desliguei.
Li e reescrevi tirando alguns exageros a peça “José” escrita dois anos atrás. A primeira pergunta que me fiz agora é porque José tem esse nome. E são vários os motivos, o principal é que trata-se do meu primeiro personagem de teatro, uma gênenis da minha escrita, então o nome José me pareceu apropriado. José é o pai de Jesus e somos obrigado a ter essa lenda sobrevoando constantemente sobre nossas cabeça. José é o nome de meu pai e o nome do meu avô. José é o nome de Saramago, talvez o escritor que me fez ter o maior impacto estético e o sujeito que me fez ter vontade de ser da literatura. José também é aqui um nome anônimo, José da Silva, um nome que serve pra exemplos. “E agora, José?”A festa acabou,a luz apagou,o povo sumiu,a noite esfriou.”, diz Drummond. “Todo dia um ninguém José acorda já deitado.”, diz Camelo. “O espinho da rosa feriu Zé, O sorvete e a rosa, ô, José! A rosa e o sorvete, Ô, José! Foi dançando no peito, Ô, José! Do José brincalhão, Ô, José!...” , disse Gil.
José é tudo que me fez nascer, me compõe José sou também eu. No entanto, é importante dizer, acima de tudo é que José é um cidadão. É um anônimo cidadão, um ser político que trafega pelo mundo e que se estanca e se vicia e que se torna absurdo não por motivos puramente pessoais, mas públicos, pois José também é todo mundo. José trabalhou, José foi aposentado, José, não se sabe como, comprou esse apartamento em um condomínio de luxo e se vê sozinho onde tem tudo. Já era sozinho, mas era obrigado a trafegar, agora não mais.
José é o próprio tráfego, é a própria rua e sua autoestrada é si mesmo. Como muitos de nós.
Shelley diz: “Um poeta participa no eterno, infinito, no único; até onde concerne às suas concepções, o tempo, o lugar e os números não existem.” Se isso for verdade, espero nunca ser poeta, porque o que escrevo é do presente, o maior presente do mundo e esse infinito, esse eterno que atribuem ao poeta é só uma forma de aliená-lo. Não existe saída possível: ou se escreve desse nosso presente ou, mesmo falando, se faz silêncio.

17 novembro 2010

prólogo

Quando eu era criança minha mãe me contava uma história que dizia ter ouvido de sua avó. Ela era minha bisavó e tinha o apelido de “Vozinha”, o que me soava afetivo e engraçado, apesar da história que ela contava ser muito triste.
A verdade é que não me lembro desse conto de família e tenho certeza que minha mãe sabe, mas preferi nunca perguntá-la. Sei que era sobre um pássaro, acho que um papagaio, que era maltratado pela sua dona. Ela não reparava nele por ele ter feito alguma coisa errada e deixava-o passar fome. Todos os dias ele dizia: “Tô fraco, sinhá!”. Prestes a morrer dizia : “To fraco, sinhá! To fraco, sinhá!” Por fim, morria. Não lembro com precisão, mas acho que sim. A história era muito triste e minha mãe dizia que sempre chorava assim com essa história. Ela e seus irmãos.
Eu queria saber mais e minha mãe dizia que eram várias histórias que a Vozinha contava na cozinha antes de todos dormirem, algumas felizes, outras tristes. Muitas faziam chorar. Eu não entendia dessas histórias, me pareciam ter acontecido em outro mundo e eu tinha medo. Via televisão para esquecer e tinha sonhos estranhos. Quando acordava ficava pensando num pássaro que dizia “Tô fraco, sinhá!” e pensava que se os pássaros pudessem falar três palavras antes de morrer seriam sempre essas.
Pra mim, todos morriam igual, fracos e sem poder voar...como os pássaros.

15 novembro 2010

cachorro porco

Achei uma poesia minha escrita na 6ª série e foi inevitável postá-la aqui. Dei algumas risadas e agora a li como uma metáfora e a poesia que obviamente era só uma piada ganhou algum sentido.

Cachorro porco

Você só faz coco
Cachorro do morro
Te ensino a mudar
Cachorro teimoso
Todos vão te chamar
De cachorro porco
Põe rolha no bumbum
Apaga o teu fogo

Sai daqui, sai fora do meu lado
Senão eu mando te castrar
Saí daqui, estou desesperado
Senão sou eu que vou te matar

Assim você não vai me atrapalhar

Sai daqui, sai fora do meu lado
Eu mando a carrocinha te pegar
Saí daqui, estou desesperado
Senão sabão tu vai virar

Você é um horror
Cachorro do morro
Eu não vou te mudar
Cachorro teimoso
Sai pra lá, sai daqui
Acabou o teu jogo

11 novembro 2010

o anão 2

O anão estava sentado em um banco de frente para o mar. Suas pernas que não tocavam o chão se balançavam e logo começaram a doer, por isso teve que colocá-las pra cima, como criança ao fazer um pic-nic. Olhava o horizonte com atenção, o que levou alguns passantes a crer que ele estava pensando, refletindo sobre a vida ou coisas importantes, mas ele não era capaz disso. Era prático e via apenas a água até a metade azul e verde depois, a areia com algumas poucas pessoas e o céu que era azul apesar de algumas nuvens. Nada mais. Murmurou para si: “e dizem que isso é um espetáculo da natureza” e se calou, pois não pegava bem ficar por aí falando sozinho. A natureza estava muda.
De repente um barulho atrás de si. Tentou se virar, mas não foi capaz, então pulou do banco para olhar. Quando se virou, dois meninos vestidos com uniforme de hóquei estavam atravessando o calçadão, um de vermelho e outro de azul. Corriam com muita destreza e o primeiro que com seu taco conduzia o disco mantinha no rosto um sorriso maquiavélico. O anão tentou se encostar na mureta, mas quando os dois passaram, esbarraram nele que virou uma cambalhota e sem controle caiu sentado na areia.
Filhos da mãe, gritou em bom som e logo se levantou indignado. Avançou na perseguição dos rapazes. As pernas curtas demonstraram que nunca iria alcançá-los, mas o ímpeto e a raiva prevaleceram. O rosto em poucos segundos se encheu de suor que se espalhou pela camisa, formando uma escura e densa marca molhada que se misturou a quantidades imensas de areia que haviam grudado na camisa, mas que os pequenos braços não eram capazes de espanar. Desistiu de caçá-los, jovens são assim mesmo.
Acontece que logo quando ele desistiu os rapazes voltaram a se aproximar. Agora o outro liderava o disco com o sorriso endemoniado e o outro seguia atrás. Ao passar, viraram o rosto para o anão que estava xingando, mas não conseguiram ouvir coisa alguma.
O anão voltou a correr atrás deles e os viu se afastarem. Quando de uma esquina apontou um mini-carro de golf com dois policiais nele. Nervoso ele apontou para a direção dos rapazes dizendo: “atrás deles.” mas pelo visto era ele o suspeito.
O carro parou ao seu lado e os dois policiais saltaram.
Você está brincando com autoridade, baixinho?
Não senhor, foram os rapazes, senhor. Me acertaram.
Que rapazes?
Os dois de patins.
Os policiais olharam para os dois lados, mas os rapazes haviam sumido.
O senhor está bêbado, senhor?
Não. Os dois passaram aqui jogando e me derrubaram, por isso estou sujo. Fui atrás deles, por isso estou suado.
Você acredita nele?
Eu não e você?
Eu também não.
Mas seus guardas, eu estou falando a verdade. Pode perguntar pra qualquer um, deve haver uma testemunha.
Olhou para os lados e quase não viu ninguém por perto. Na verdade, um grande silêncio prevalecia e era possível ouvir o som das ondas quebrando no mar.
Isso aconteceu tem muito tempo, senhor?
Não, foi agora agorinha. Tem 2 minutos. Eu estava sentado olhando o sol quando veio o barulho.
O Sol? Mas o sol já se pôs, senhor.
Não tinha ainda percebido isso, mas era verdade. Estava escurecendo o que devia aumentar seu aspecto suspeito. No entanto, aparentemente cansados os policiais se sentaram no meio fio, ficando quase na altura do anão que tentou falar alguma coisa que foi interrompida por um policial.
Está liberado.
Assim? Você não vai atrás deles?
Não há ninguém, senhor. Volte para casa, tome um banho e descanse. Tenha um pouco de dignidade e boa noite.
O anão baixou a cabeça, deu um “Boa noite” constrangido e se retirou dali. Passou pelo banco e pensou em sentar novamente para agora olhar a lua, mas desistiu. Era já hora de ir para a casa e, talvez de propósito, talvez sem querer, foi andando na direção contrária de seu caminho.

10 novembro 2010

a mão que cai

"Ele deve ter uma aparência completamente diferente quando vem á aldeia, outra quando a deixa, outra ainda antes de ter bebido cerveja, outra depois, outra acordado, outra dormindo, outra sozinho, outra durante uma conversa e, o que é compreensível, quase inteiramente outra lá em cima do castelo." Franz Kafka


Um homem corre por uma calçada. Tem pressa, usa uma mochila e está suado, só isso que se pode dizer. Passa por um muro coberto por uma relva rasteira e algumas flores como adorno. Faz sol e a corrida é extenuante, tanto que para o homem que está acima do peso parece não ter fim.
Alguns passos a frente, avista uma pequeno galho que cresceu mais que os outros e expôs uma flor em seu caminho. O homem passa por ela e dá-lhe um tapa. A flor cai e sua mão fica junto. Ele interrompe a corrida no ato afim de tentar recuperar sua mão, mas não é possível: ela está inseparavelmente colada à flor.
Ainda com pressa, pois não pode atrasar para seu compromisso, pega com a outra mão a flor e a mão do chão e carrega junto consigo. Estanca mais alguns passos e guarda ambas na mochila.
Do outro lado da rua, havia três testemunhas do ocorrido. Dois homens e uma mulher que não se furtaram de emitir opiniões a respeito do ocorrido. “Uma lástima”, disse um, “não se fazem mais mãos como antigamente. Hoje em dia tudo é descartável.” “Pobre homem”, emendou o outro, “porque aquela flor foi se meter justamente entre ele e seu caminho? Ele andava tão apressado, deveria estar indo resolver algo muito grave. Um caso de vida ou morte.” “É bem feito”, disse a mulher, “quem maltrata a natureza devia ser preso, perder a mão, o braço, para aprender. Foi um exemplo para nossas crianças.”
Acontece que os três se despediram e propagaram a história para mais pessoas. A mão que caiu parece significar agora tantas coisas e ter tantas possibilidades que o próprio ato da queda da mão com a flor em si parece ter se perdido. Ninguém atentou que o homem que perdeu a mão pode ter ganhado uma flor. Ninguém pensou que aquela flor podia ser útil porque ele estava atrasado para um encontro com sua namorada.
Não se pensou no homem, não se pensou na flor, muito menos na mão, mas somente que aquilo era alguma outra coisa. E era. O homem, logo ao dobrar a esquina, abriu a mochila pegou sua mão e colocou de volta no lugar. Com um sorriso no rosto teve todo cuidado para não expor as muitas cartas que estavam escondidas por detrás de sua manga e a pressa toda era que, infelizmente, uma criança provavelmente ia ficar sem mágicas em seu aniversário.