29 agosto 2012

pesadelo

Eu tive um pesadelo essa noite. Estou em um churrasco ou evento de família quando chega minha mãe e começa a fazer um relato. É minha mãe, mas era também outras mães, as mães de amigos que eu conheci e algumas mulheres mais velhas. Ela começa:

Aconteceu algo que eu preciso contar. Como todos vocês sabem eu e meu marido vamos fazer 50 anos de casados, então fui até à igreja em que casamos nesse tempo longo com a intenção de marcar essa celebração com o mesmo padre, que é conhecido de todos nós. Ele conhece meu filho, viu meu filho nascer, deu primeiro comunhão ao meu filho. É um homem faz parte da minha história também.
Chego na igreja e chamo por ele. Ele está nos fundos, colocando algumas meias no varal, coisas pequenas. Ele me olha, me ignora e volta a olhar as meias. Eu me aproximo, chamo por ele, coloco a mão no seu ombro e ele vira com um tapa no meu rosto. Eu caio, já não sou tão nova quanto parece e, apesar dele ser ainda mais velho que eu ainda tem mais força. Eu levanto e, sem saber o que fazer, pergunto porque ele fez isso. Ele me bate novamente, agora com um soco na cara. Grita: “Vocês mulheres o tempo inteiro, vocês mulheres resolvendo os problemas dos homens. Vocês insistindo em amar e querendo salvar a vida de todos. Você acha que você vai salvar seu casamento e seu homem fazendo isso? Você acha que depois de tanto tempo com aquelas pequenas brigas tudo vai ser diferente só porque uma igrejinha e um padre te abençoou? Eu tento argumentar que são 50 anos e que gostaria de agradecer a Deus e a todos por isso. Lembro de meu filho que se diz ateu. O padre, nesse momento, parece bastante religioso e o ateísmo do meu filho sempre parece mais gentil. Então resolvo fugir dali, mas ele me espanca mesmo. Fico completamente ensanguentada no rosto, inchada, doída.
Isso serve para todas as mulheres.

Aí ela acaba o discurso e eu me guardo de uma raiva que não lembro de ter sentido. Quero acabar com esse homem, mas penso que esse é o momento político mais importante da minha vida. Penso no amor dos meus pais e na violência de tudo que não é esse amor, penso em toda violência que já fizeram comigo e que continuam fazendo, principalmente aqueles que gostam de mim. Penso nisso e reúno mulheres pra contar essa história. Meu sonho continua, mas o que eu queria dizer dele, acaba.

20 agosto 2012

667

Não tira da cabeça a lembrança dos olhos dela, mas até quando? Não repara, e acha até que já falou com ela na profundidade desse olhar. Não acha que olhares devem ser fundos e te buscarem pra dentro, prefere que o olhar seja exatamente como o dela: profundo, mas que pulsa pro lado de fora, cheio de vida, graça e encanto. Aos poucos, no entanto, a lembrança do olhar vai se esvaindo e ficando apenas aquilo que lembra de ter visto e na semi-vontade de reve-lo mesmo que agora já sem tantos motivos.
Não tem interesse por encontros furtivos ou desencontros espetaculares porque baseou toda sua vida na ideia da preguiça, da sinceridade, da paz e da cumplicidade. O jogo do time num domingo a tarde é um dos anseios mais altos, assim como as tardes dedilhando músicas repetidas, ou lendo livros, brincando com o gato ou simplesmente vendo a vida passar. As coisas que escreve nunca as faz pra conquistar ou comover ninguém: usar um talento pra qualquer tipo de conquista é um ato covarde de vandalismo com a possibilidade de sentimento do outro. A arte deve ser a manifestação mais profunda (e cheia de vida, de graça e encanto como o olhar dela, mas acho que isso já ficou claro) de uma retidão de caráter, de uma gentileza para si e para o outro e uma forma de reencantar mundo.
O mundo que parece tão frágil e seco deve ser reencantado por aqueles que tenham talento e possibilidade para tal. Quando vê alguém que usa da arte para seduzir, como em uma banda, numa canção ou arte, uma pose ou poesia percebe na hora a violência do gesto. Entristece e quase desiste de escrever novamente. Não o faz.
Acontece que aos poucos a lembrança do olhar dela vai de desfazendo como uma chuva de verão, um pombo atropelado no asfalto quente, uma foto que amarela na estante. Não lamenta. A vida é assim, a vida é doce e está tudo bem. Seu time melhora, sua cerveja continua quietinha, a preguiça lhe faz companhia e os livros ainda lhe fazem viajar. Quando a vida expõe suas pequenas tragédias, dá um sorriso e entende que é assim que tem que ser. O gosto de experimentar as nuances da vida é sempre bom. Ele não pode fazer nada em relação à nada e, no fundo, ele sabe...nem ela.

pequeno brasil


Estavam a direita e a esquerda conversando em um bar. Ambos reconheciam que tais termos eram por demais exagerados para os dias de hoje, mas evitavam falar disso para não cair em conceitualismos abstratos. Comentavam juntos sobre a participação do Brasil no encerramento das Olimpíadas, mas o assunto podia ser qualquer outro.


- Não é possível, cara! Não é possível que o Brasil se veja com olhos que são tão estrangeiros a si próprios. Que ele não consiga fazer uma tradução daquilo que lhe é mais importante, tanto economicamente, tanto politicamente. O Brasil precisa parar de se ver como um estado que concentra o pensamento de si baseado naquilo que o outro viu, vê e verá. Ele não pode se pensar pelo olho do outro.

- E mais do que isso! O Brasil não pode eternamente repetir a carta de Pero Vaz de Caminha em que a terra é boa e “onde tudo que planta dá” e o povo é dócil e as matas são infinitas e os rios mais limpos e mais coloridos e o céu é mais azul. Não dá pra gente ser o paraíso que os outros dizem que somos porque o paraíso é um lugar estático, que não pode se transformar, ele precisa ser eternamente estável para que seja paraíso. O paraíso que muda é o paraíso caído. E essa ideia de que o Brasil não pode mudar é exatamente a ideia de alguém que quer explorar o Brasil, mudando-o pra ser sempre o mesmo.

- Sempre o mesmo, mas nunca o mesmo. O dinheiro entra, o Brasil cresce, se desenvolve, se educa, se industrializa, mas o que se vê ainda é bunda, teta...quando se quer amenizar, se mostra bunda e teta em mulheres vestidas de índio e homens descamisados como se estivessem indo para a caça, mas a imagem a sempre é a mesma: pornografia disfarçada em alegria e gentileza. O Brasil não fica vendo bunda, fica vendendo bunda.

- Por fim, colocam a Marisa Monte. O ícone cool da zona sul carioca pra cantar Vila-Lobos, vestida de Iemanjá pra tentar dizer que tudo aquilo faz parte de nossa cultura, de nossa africanização simbiótica com o aportuguesamento. Nada disso é verdade. A Marisa Monte é branca e representa só a elite branca, assim como Vila-Lobos, e a imagem de Iemanjá, absolutamente esterilizada, serve apenas de contexto, de pano de fundo pra expor um exotismo que quer ser vendido.

- A Marisa Monte ali representou tudo que poderia haver de pior.

- E no Brasil, quem deveria tocar? Michel Teló.

- Talvez seja melhor do que repetir eternamente “Ela é carioca...ela é carioca...”
 
- Talvez.
 
- O Brasil é uma armadilha. É impossível pensar nele sem automaticamente cair em uma de suas armadilhas. O que há de melhor é instável e o que é estável nos parece tão europeu. 

- A antropofogia é uma saída?
 
- Não sei. Acho que precisamos supera-la.

Aí, como em todo bar o assunto se desvia para alguma coisa mais banal. E o Brasil ainda continua tentando e não conseguindo ser pensado de maneira apropriada. Mas algo avança...é o que parece.

19 agosto 2012

boa solidão

Ontem tive um dos melhores dias de solidão.
Fui dirigindo pela Lagoa, olhando aquela bela vista, seguindo os carros, no rádio canções aleatórias da mpb. Todas aquelas pessoas passeando e os barcos navegando e as luzes da cidade circulando naquele lugar tão belo.
Depois, no caminho de subida da serra, também ouvindo música, fui olhando os prédios, as casas, os letreiros dos motéis e as luzes do polopetroquímico, aeroporto e postos de gasolina. A vida fazendo sentido, pouquinho, mas fazendo.
Mais tarde, em Petrópolis, sentar num bar, pedir uma coca-cola e um pastel e olhar atentamente a cada pessoa fazendo de tudo pra se divertir com seus copos de cervejas. Olhar o mundo com uma distância complascente e consciente. E olha, como era belo.
Depois encontrar uns poucos amigos e tomar umas duas ou três cervejas, pensando na gente, na nossa amizade, na nossa cultura, nosso país.
Por fim, ouvir levemente o som de uma banda que me inspira uns sentimentos muito bonitos que costumo guardar. Quantas belas canções, quantos bons amigos e quanto carinho por aí.
Vou pra casa a pé, sozinho, vendo uma semi-neblina às 3 da manhã e estou feliz. Completamente feliz.
Como pode? Ás vezes, de vez em quando, pode sim.

17 agosto 2012

questão de ordem

não existe nenhuma dilema
tampouco qualquer ética
se por aí está a desordem
aqui está minha calma.

falo, mas como na política:
como questão de ordem.

14 agosto 2012

ronrona

o som da minha cama é quieto
quase mudo
ronrona
o som dos nossos pedidos
e dos nossos sonhos perdidos.

13 agosto 2012

é um

aí você olha e vê que o mundo inteiro está explodindo lá fora. Pensa: E eu, por que eu estou aqui? Porque talvez seja preciso estar onde se está e fazer o que se faz para que o que é pensamento e desejo ganhe forma pra adentrar o mundo da vida sensível. Tudo que é sem plano (porque a palavra já diz) não tem chão, escorrega por entre as frestas irregulares do universo e tende a vagar por um caos de indefinição.
Ora, que se saiba que toda minha poesia é verdadeira, apesar de eu mentir às vezes, e toda minha verdade fui eu que inventei mais cedo. E as duas, mentira e verdade são faces não do meu pensamento, mas da minha composição, do meu organismo, daquilo que faz de mim uma coisa que quase nunca sei que sou.
e o amor? quando eu raramente falo de amor, falo pra lembrar que ele existe, pelo menos em palavras espalhadas pelo mundo e pelos gestos mais sutis que faço em direção ao fora. Porque amor de verdade mesmo, amor amor, só dentro do próprio vocábulo. amor é amor. é átomo. é um.

a pressa

da minha janela vejo a montanha e o prédio
mas sei que entre eles há um fosso
onde as pessoas passam
com sua tristeza, com seu desgosto
e com a insistente pressa de achar
que hoje vai ser diferente.

11 agosto 2012

não sei.

Não tem nada de importante ou de interessante no meu jeito de falar, eu sei. Apesar disso, falo. Gostaria às vezes de não falar ou de retirar palavras do mundo por achar que ele já está cheio delas. Outra hora, acho que minha obrigação é reencantar o mundo com outras, sei lá. Tudo me parece chato de vez em quando. Aí eu penso em desistir da palavra e é quando escrevo mais ainda. Não sei...escrevo agora 2:20 da manhã pra dizer que não sei.

08 agosto 2012

pequeno

sei o tamanho que tenho
e a lógica não me conteste agora:
por dentro sou maior que por fora.

07 agosto 2012

simplesmente

as pessoas jogam futebol por aí
eu leio Fausto trancado em casa
outros vibram com os carros barulhentos
eu choro só porque uma pessoa chorou.

aí eu acho que sou tão diferente
e me encanto com a cor do sol do céu
e percebo como sou óbvio e careta:
o que vejo todo dia não deveria me surpreender.

aí eu falo de poesia, penso em poesia
atravesso a rua em poesia
e desencontro o que mais quero em poesia.

é que não faz sentido que o mundo concorde
ou que os outros concordem
ou que faça sentido o que nem sei se é caminho

sei que atravesso a noite
raras vezes o dia
nunca a manhã
e tenho vergonha de tudo que faço

não quero ganhar nada,
não joguei
não faz diferença se sou feliz
porque a vida é boa
ou simplesmente porque não sei.



04 agosto 2012

invenção

Percebo que na vida, algumas vezes, o que nos falta é inventar. Não há nada em si e tudo pode ser direcionado pela nossa criatividade que é tão latente e tão presente e tão pungente. A invenção da alegria, da felicidade, de uma sexta-feira, de uma praia, de uma tarde, de um sentimento, de um mundo inventado não pela miséria da alienação, mas pela imensa vontade de estar na vida.
Inventar é trazer vento pra dentro. In-ventar. É dar novos ares àquilo que é velho e fazer o contrário daquilo que nosso corpo e nossa cabeça pede. Quando nos tornamos óbvios, assassinamos nossa juventude em prol daquilo que imaginamos que somos ou devemos ser. Inventar que um amor existe não é amar, é uma declaração de amor ao mundo e a tudo ao nosso redor.
E olha, é preciso muito mundo pra tanta invenção que eu tenho pra essa tarde de sábado.

03 agosto 2012

sutileza

Estava no ônibus e por mais uma dessas coincidências da vida a bateria do meu celular acabou e não pude ouvir música. Ouvi então os sons do motor, do vento lá fora e de alguns diálogos sussurrados por perto. Ao meu lado, haviam dois portugueses. Um casal de sessenta e poucos anos passeando, olhando a vista como se estivesse a reconhecer neles alguma coisa que havia do lado de fora.
A beleza que eles viam é a beleza que já não vejo, mas decidi ver com eles, junto deles, à partir deles e foi aí que tive uma pequena sensação, frágil, bela. Olhavam à mata, quando o homem disse: "não há nada, mas é lindíssimo."
Essa frase que pode significar tanto me fez automaticamente entender um milhão de coisas sobre a vida e, naquele instante, me dei o direito de sonhar.
Às vezes, precisamos dos outros pra reencantar o mundo pra gente.

02 agosto 2012

o sonho e a noite

às vezes eu sonho com a noite
em que os sonhos e as noites
sejam vezes demais
pra serem só noites e sonhos

às vezes eu fuço fundo
e falo de cada instante
às vezes fixo um ponto
e fabrico um outro distante

às vezes os fatores da vida
os factoides dos outros
as falácias dos tontos
viram vezes demais

é quando fuço fundo
fico fora, fixo, falante
e facilmente me entorto

é que nunca
nem um pouquinho
um bocadinho de carinho
me tira do caminho
de te fazer sorrir.