01 abril 2006



Não é por minhas mãos sujas de cansaço que me sinto abandonado. Não é por causa de minhas unhas sujas e roídas seguidamente, após crescerem insistentemente marcando o tempo que se esvai, que as vezes tenho impulsos de rebeldia. Não é por essas roupas velhas e por esse capacete que me esconde a cabeça e a inteligência que me sinto impelido a largar tudo e abraçar o inimigo. Nem é a saudade que quase sempre a noite me acorda do meu meio sono confuso que me faz pensar em desistir de tudo. Muito menos é por esse rifle, que em minhas mãos já causaram dor, mas que em minha companhia, já se fundiu em mim, criando um laço quase afetivo, que me lanço assim ao destino. De todas as dores, insistências, cansaços, sujeiras, descasos, mortes, infelicidades e saudades, o que mais me faz chegar no real sentido de onde eu posso estar é esse meu olhar.

Olhar que há muito já se foi, já não está em mim, já não reflete aquilo que sou, nem mesmo a radiante alegria de viver que tinha ao chegar aqui. "Defender a pátria" pensava eu. Um dia, talvez ele tenha visto que eu não defendo nada, apenas mato minha própria raça, a parte do mundo que é igual a mim. A gente não sabe construir uma coisa que está fora da gente.
Meu olhar, ou meu ex-olhar, perdeu o horizonte. Ele agora, vai solto, além dele mesmo, talvez viajando por campos, ranchos, bosques, parques, noites e dias. Não de paz, na minha utopia de vida, mas numa tranqüilidade serena de quem sabe que está vivo. Traze-lo de volta, talvez seja faze-lo sofrer um bocado mais, por isso ele se foi, e por isso eu deixei que ele se fosse. Ele já não dói.

À frente dele, uma trincheira que ele próprio não vê. Mas sei que ela existe, porque tenho a meu lado meus amigos. E por eles, meu pobre olhar enxerga. Meus companheiros de trabalho, de luta, ou cúmplices de nossos assassinatos contínuos em nome de alguma desconhecida paz. Ah, aventurado olhar que por perdido, ainda me mantém vivo.

Toca-se a trombeta, avisos de atenção. E em dois segundos estou a postos. Alinhamo-nos todos em fila, preparamos o ataque em alguém que em momento algum vai nos atacar. Sabedoria ou covardia? Já nem sei. Não fui trazido aqui para questionar. Corpo rígido, em forma. No lugar de um terço, aperto um pouco mais meu rifle, que torna-se quase sagrado, e sigo marchando. Entro num carro, me levam para outro lugar, onde em dois segundos começo a atirar. Levei um tiro? Isso é sangue? Caído estou, não tenho a noção exata, o barulho é alto e a correria também. Existe algum choro de criança por aqui talvez.

Não posso precisar nada, porque embora aqui esteja, meu olhar, que talvez seja minha alma, minha consciência, ou simplesmente uma parte minha perdida, já não está aqui. Sozinho, vaga por algum lugar bem melhor do que esse.

4 comentários:

Anônimo disse...

É impressionante, mas o seu texto expressa exatamente como o ser humano é boçal. Ou melhor, parte do ser humano. Engraçado, mas eu nunca vi alguém escrever sobre isso, sem ironia. Você consegue.

Abraços.

Anônimo disse...

Caraca. tô impressionada, vc escreve MTO.
parabéns, ficou perfeito.

=**

Anônimo disse...

eu gosto do que você escreve, sr. meu irmão.
um dia eu também quero saber assim.
belo, belo texto.
moço tão especial que é você
:*****

Anônimo disse...

Está muto bom o seu texto *____*
Onde estaria tal paz? afinal quem morre e mata, sente dor , chora e preferiria estar longe dali, não são os que causaram toda essa morte desumana.
Quem luta pelo que ama, pelo amor a alguém, pela beleza em que veêm na vida, são pessoas que muitas vezes queriam só estar com sua família, ou então sozinho em paz...
Infelizmente tudo isso acontece .

abraços