16 novembro 2011

A Mãe

Baseado em "Orégano"

Estava decidida a se matar. Planejara tudo com antecedência, mas não muita que é como se decidem os jovens. Há duas semanas atrás, sem motivo aparente, sem sofrimentos amorosos, familiares, decidiu que a vida era enfadonha e não valia todo aquele esforço. Lembra-se que estava em uma aula de filosofia e ouvia o professor falar sobre o sublime e a desmedida em Kant e que aquilo lhe parecera irreal: pensava que o tempo e a projeção que se fazia nele impedia a desmedida, afinal o tempo e o espaço eram esencialmente a mesma coisa.
Enfim, uma decisão tão importante nem sempre nasce com regras e ela, jovem e bela, havia decidido se matar e o faria ainda hoje, logo após anoiteicer, assim que terminasse a exibição de Chaves: era esta pureza infantil que queria como último sentimento. Decidiu que morreria com pílulas, era bonita e vaidosa demais para se matar pulando da janela ou se dando um tiro. O gás de cozinha havia sido uma opção, mas queria facilitar o trabalho da perícia em atestar se ouve acidente, falha ou suicídio.
Acordou cedo e decidiu escrever uma séria de cartas. Escreveu a primeira para sua melhor amiga, ficou entediada e decidiu que deixaria apenas uma mesmo, mais alegre, sem explicar demais as razões que a levava ao ato. A única coisa que deixou claro foi que ninguém tinha culpa de nada e que morria por preguiça.
Foi almoçar em um restaurante caro. Sentou-se em um canto movimentado e ficou olhando as pessaoas comerem. Não se sentiu feliz nem triste, lamentou apenas ser uma das últimas coca-colas da sua vida. Lembrou de uma história que ouvira certa vez na igreja. Estava entediada, de novo, e preferiu ouvir dois jovens bonitos que conversavam atrás dela que o padre. Dizia um:
Eu não acredito nisto que o padre está dizendo. Não dá pra saber o que é viver na eternidade, aliás, eu não sei ser de outro jeito além deste.
O outro respondeu:
Tenta engordar vinte quilos, ficar bem gordo e nojento, ninguém vai olhar para você, aí você aprende a ser de um jeito que não esse.
Pode ser – disse o primeiro – mas ser gordo não vai me ensinar a viver na eternidade.
Lembrou dessa história porque agora parecia claro que a única maneira de viver na eternidade era se privando do tempo, ficando sem contato humano algum, nem ao menos através dos meios de comunicação. Agora, isolada no restaurante, tinha a sensação de que viveria eternamente, como se já tivesse morrido. Decidiu, então, mudar de planos e passar a última tarde da sua vida sozinha, como se já vivesse na eternidade prometida não pelos padres, mas sim pelos jovens preocupados em serem magros.
Foi para casa e sentou no sofá. Tentou não fazer nada e não fez por um bom tempo, talvez uma hora na eternidade, sem pensar, só às vezes lembrando de fatos e pessoas que não sentiria falta. Pouco tempo depois, de súbito, levantou, foi até a cozinha e começou a lavar a louça. Queria a casa limpa quando todos descobrissem sua morte. E assim foi, depois da louça decidiu passar sua última tarde fazendo faxina. Varreu a casa, limpou banheiro, jogou papéis velhos fora e até esfregou azulejos que tanto custava fazer enquanto queria viver.
Enfim, terminou e, de novo no sofá, percebeu que começava a escurecer. Eis a hora. Sentiu nesses últimos instantes de vida que podia fazer qualquer coisa e percebeu que gostaria de um último contato humano.
Pegou o telefone, olhou para ele e discou um número qualquer. Chamava. Deu alguns toques, mais alguns e ninguém atendeu. Aquilo frustrou-a profundamente, afinal de contas assim é a vida: “sempre que dependemos dos outros, algo dá errado.”
Não se conteve, tinha raiva e abriu uma cerveja. Bebia devagar para tentar apreciar e dois copos depois se acalmou. Bebeu outra só para confirmar a volta da alegria. O telefone tocou. Sorriu, afinal, atenderia uma última ligação.
Pegou os remédios da despedida, colocou-os ao lado do telefone e atendeu:
Alô? Não, não é daqui, não, não tenho nenhum filho. José? Não conheço, desculpe, é engano, não chore, senhor, é engano. Onde o senhor está? Não chore, por favor, mas não é daqui não, deve ser um número antigo...
Estava perplexa. Não conseguia largar o telefone que repetia aquele sonoro tutututu. Quem era José? E que sofrimento era aquele que vivia? Como pode alguém viver sofrendo assim? Estava tão feliz com essa despedida sua e agora tudo parecia ruir. Como poderia morrer agora por conta de uma aula de filosofia quando um José, aparentemente com idade, ligava para sua mãe e lhe queria tanto e chorava e sofria?
A moça aquele dia não fez mais nada. Não se matou. Uma vida estava salva no reino dos céus e demoraria a chegar naquela aparentemente falsa eternidade. Mas não chegou a pensar nem por um momento que, naquela hora, alguém morria e esse alguém se chamava José.
E José morreu, sem saber que, no último instante, salvara uma vida.

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